O vale dos caídos no século xxi

O Vale dos Caídos é o monumento mais polémico da Espanha contemporânea. Francisco Franco concebeu o projeto durante a Guerra Civil (1936-1939), a fim de receber os corpos daqueles que morreram lutando ao seu lado, “por Deus e pela Espanha”, e para comemorar seu sacrifício e martírio. O projeto começou a ser construído em 1940 e, depois de quase 20 anos de trabalho, foi inaugurado em 1 de Abril de 1959, no vigésimo aniversário da “Vitória” na guerra. É um monumento impressionante e enorme, cuja basílica foi escavada numa colina rochosa, e é coroado por uma enorme cruz de 150 metros de altura. Concebido como um panteão, há atualmente nas suas criptas subterrâneas cerca de 33.800 corpos.

Vale dos Caídos | fotografo anónimoVale dos Caídos | fotografo anónimo

Poucos dias antes de sua inauguração, o líder do Falange (o partido fascista espanhol), José Antonio Primo de Rivera, que tinha sido executado na prisão pelas autoridades republicanas em 20 de Novembro de 1936, foi transladado para o Vale e colocado num lugar de honra, em frente ao altar principal. Quando Franco morreu, em 20 de Novembro de 1975, altos membros de seu governo tomaram a decisão de transferi-lo também para o Vale. Franco foi enterrado do outro lado do altar principal. A coincidência nos dias das mortes tornou o 20-N na data mais simbólica para os nostálgicos do franquismo.
Durante décadas, falangistas e coletivos franquistas organizaram comemorações  nesta data tão importante, incluindo marchas paramilitares de Madrid para o Vale, e saudações e hinos fascistas junto aos túmulos dos dois líderes. Este culto político entrou em declínio, e a Lei da Memória, impulsionada em 2007 pelo governo socialista de José Luis Rodríguez Zapatero, proibiu qualquer ato de caráter político no monumento. Mas os monges beneditinos, que possuem a custódia do monumento desde 1959, continuam a manter a essência nacional católica do edifício e o culto, orando nas suas missas pelos “mortos por Deus e por Espanha” e pelo sangue derramado no conflito, apelando à “unidade da nação ” - anacronismos de origem franquista. Enquanto o túmulo de José Antonio perdeu relevância, o de Franco - e mais concretamente os seus restos  mortais -  tornaram-se o último bastião da legitimidade de seu regime.
No contexto das disputas memoriais sobre a Guerra Civil e o seu legado, que têm vindo a ter lugar em Espanha nestas últimas duas décadas, relacionadas com a exumação de centenas de valas comuns de civis republicanos executados por paramilitares franquistas desde 2000, o governo socialista criou uma Comissão de Peritos para o futuro do Vale dos Caídos, em 2011, com o intuito de obter recomendações para democratizar o monumento, cuja história dominante ainda é claramente franquista. A proposta mais polémica recomendava a exumação de Francisco Franco do monumento como elemento fundamental para a sua ressignificação. Outra referia a necessidade de acolher as reivindicações de alguns familiares de civis republicanos executados pelos franquistas e que foram transferidos para as criptas do Vale sem o seu conhecimento ou permissão e que, apesar das dificuldades técnicas, exigem a devolução dos corpos. No período 2011-2018, o governo de direita de Mariano Rajoy cancelou as subvenções do Estado aos programas de memória e ignorou as recomendações do relatório sobre o Vale, considerado pela direita política como um monumento pela reconciliação entre as “duas Espanhas “, e a possível exumação de Franco.
Em junho de 2018, pouco depois de tomar posse, o novo presidente socialista Pedro Sánchez anunciou, como uma das medidas emblemáticas da sua legislatura, a sua vontade de exumar Franco, assim que possível, seguindo as recomendações da Comissão de Peritos de 2011. Em fevereiro de 2019, convocou novas eleições gerais sem atingir seu objetivo. Depois desta ameaça direta ao funeral de honra de Franco no Vale, as visitas dos nostálgicos do franquismo ao monumento aumentaram enormemente. A resistência desta exumação de Estado provem de várias frentes: da própria família do ditador, da Fundação Francisco Franco, e dos próprios beneditinos encarregados do culto na Basílica. O fato de Franco estar enterrado “em local sagrado” e da decisão da sua família – de que caso não se possa impedir uma exumação, a que se opõem irrefutavelmente, Franco seja transferido para a Catedral de Madrid – forçou o governo a procurar apoio junto do  Vaticano, transferindo o conflito para a esfera diplomática. O destino do corpo de Franco, que ainda está no Vale, tornou-se o centro de uma controvérsia memorial de primeira ordem que questiona a capacidade da democracia espanhola de se livrar de uma vez por todas do tenaz fantasma do seu último ditador.
 
Leitura recomendada em acesso aberto: Francisco Ferrandiz. 2019. “Guerras sin fin: guía para descifrar el Valle de los Caídos en la España contemporánea”. Política y Sociedad 48 (3): 481-500.

 

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Translation:  Fernanda Vilar

por Francisco Ferrándiz
A ler | 6 Abril 2019 | Franco, guerra civil de Espanha, Memoirs