O Tempo das Huacas

Musealização de corpos Ameríndios e intervenção “artivista” enquanto contra-representação ética e estética

Juntamente com a mobilização de uma operação política, então, é precioso pôr em movimento também uma operação mágica.Esta: para além do real que me é dado pelo mundo,e, sobretudo, se esse real está deformado pelas marcas de uma dominação alheia a mim,resta-me o recurso de um jogo.E nesse jogo descubro e me repito, até o último alento:

– A História, a minha história, só terá realidade quando eu me apossar dela pelo meu imaginário de homem e região.

 excerto do Manifesto Curau (Belém, Brasil, 1983) de Vicente Franz Cecim.

Apesar do papel social dos museus ser alvo de um crescente escrutínio público, muitos museus europeus de arqueologia e etnografia continuam a deter nas suas colecções objectos de outras culturas adquiridos em contextos coloniais e imperiais, em situações de desigualdade entre os coleccionadores, investigadores ou curiosos europeus e as comunidades locais. Esta é uma história com quase dois séculos, cujas origens podem parecer já remotas e, sobretudo, muito longínquas das preocupações que motivam os profissionais que atualmente trabalham em museus. Sob esta perspectiva, o movimento pela descolonização dos museus não passa de uma contenda anacrónica com um passado problemático, mas consumado, cuja expressão material os museus se limitam a apresentar com neutralidade, honrando um compromisso para com o conhecimento.

Em contraste com esta ideia, o movimento pela descolonização dos museus parte da compreensão fulcral de que o passado ainda não acabou. O passado é pensado como um campo contestado, cuja interpretação foi historicamente monopolizada por alguns em detrimento de muitos outros. Quando se trata da questão do património cultural de outras culturas presente em museus europeus, o passado em questão está quase sempre ligado a histórias de colonização que, longe de resolvidas, se prolongam na opressão quotidiana das pessoas de peles escuras, e nas diferentes oportunidades e provações experimentadas pelos indivíduos consoante a sua cor de pele, género, identidade e classe. Tratando-se o museu de um dispositivo que constrói e naturaliza representações, ele nunca poderá ser um espaço neutro.

o tempo das huacaso tempo das huacas

Na linguagem museográfica internacional, em inglês, os corpos de seres humanos que viveram vidas próprias, tiveram afectos, vivências, anseios, desejos e a sua própria dignidade, e que agora estão cativos nas colecções de museus ou acervos científicos, têm o nome de “human remains” [restos mortais humanos]. Apesar desta expressão também ser usada de uma forma respeitosa, não deixa de haver uma certa estranheza quando se fala de “restos mortais” a propósito de pessoas. Os vocábulos científicos amiúde criam distanciamento face a realidades que, se vistas sem filtro, são demasiado difíceis de olhar. Experimentando jogar com as palavras, obtemos uma injunção: “remain human” [permaneçamos humanos]. Uma chamada a que sejamos humanos. Ao mesmo tempo, a palavra “humano” não é isenta de problemas. Historicamente, o termo que designa aquele que é considerado como o “valor mais elevado”, louvado e defendido, tem servido demasiadas vezes os interesses de apenas alguns humanos, normalmente os que se encontram em posições de poder, auxiliando processos de exploração e instrumentalização de muitos outros, assim como da natureza envolvente. Do mesmo modo, ao mesmo tempo que a expressão “human remains” afirma a humanidade dos corpos, muitos dos que a utilizam continuam a estudá-los e a expô-los em museus, num acto de aparente dissonância cognitiva.

Este projecto procurou activar um processo de diálogo a várias vozes em torno da exposição dos corpos de dois jovens Ameríndios do povo Chancay  no Museu Arqueológico do Carmo, em Lisboa - um entre vários exemplos de “passados” e “futuros” por abrir em museus europeus. Daí resultou um sítio na internet , dialogando entre o real e o virtual por contra-representações éticas e estéticas, que se constituiu simultaneamente como espaço de exposição e arquivo, fórum e palco, reflexão e posicionamento artivista (artístico + activista). 

Site disponível aqui.

Integrando no site as diferentes dimensões do projecto (videoarte, performance e escrita), este teve a sua apresentação pública na Wozen a 21 de julho de 2018. A sessão incluiu uma mostra de vídeo, o lançamento de um guia não-oficial da Colecção Chancay do Museu Arqueológico do Carmo e um intenso debate sobre as temáticas em foco. 

Link para o evento na Wozen.

Na impossibilidade de identificar descendentes vivos do povo Chancay, optámos por lançar um convite a diversos artistas sul-americanos, que têm em comum a sua reivindicação de uma identidade indígena, para que expusessem em vídeo os seus posicionamentos. Foram contactos estabelecidos com artistas que não conhecíamos pessoalmente, que se encontravam noutro continente, mas que graças aos meios de comunicação contemporâneos e às redes sociais na internet foi possível contactar. Procurámos convidar artistas que traduzissem a diversidade de linguagens e identidades indígenas contemporâneas. Tiveram a enorme generosidade de aceitar o convite de dois artistas-investigadores noutra parte do mundo, que nunca conheceram pessoalmente e que, em busca de uma nova relação afectivo-cultural, tocavam em pontos delicados e dolorosos do passado colectivo comum, os artistas Alberto Alvares (também conhecido como Tupã Ra’y, do povo Guarani), Denilson Baniwa (do povo Baniwa), Ibã Huni Kuin (também conhecido como Isaías Sales, do povo Huni Kuin, também designado por Caxinauá), Jaider Esbell (do povo Makuxi) e Marilya Hinostroza (do povo Wanka).

As propostas enviadas online, diversas e ricas, responderam ao desafio de duas questões que lhes colocámos: Qual é o seu posicionamento face à exposição dos dois corpos em vitrines no museu?; e O que poderia ser feito para dignificar a sua memória e a representação dos povos indígenas? Os vídeos afirmam, de forma potente, diferentes modos de existir e resistir, em actos performativos que reinterpretam poeticamente a exposição dos corpos no museu, em momentos de partilha ou de reflexão informada.

Alberto Alvares apresenta-nos um registo entre o documentário e a ficção, encenando o próprio a transmissão de conhecimentos dos mais velhos para os mais novos por tradição oral, valorizando esse elemento identitário e de coesão afectiva, cultural e comunitária enquanto fala da situação do Museu Arqueológico do Carmo e dos espíritos aprisionados com os corpos mumificados no museu.

Denilson Baniwa, reencena o próprio dispositivo da caixa de vidro do museu e, assumindo a sua identidade cultural oprimida, coloca-se no lugar dos corpos indígenas em causa, procurando sentir e dar a sentir aquilo com que empatiza, se identifica e com que sofre. Mas fá-lo em tom de denúncia, como uma extensão da sua actividade activista pelos direitos indígenas.

Ibã Huni Kuin cede-nos um vídeo pré-existente (gravado durante a exposição ¡Mira! Artes Visuais Contemporâneas dos Povos Indígenas, produzida pelo Núcleo Transdisciplinar de Pesquisas Literaterras). Fala-nos da sua cultura e de uma inerente cosmovisão, a partir do trabalho de pesquisa corpo-imagem que tem desenvolvido no âmbito do MAHKU – Movimento dos Artistas Huni Kuin. Canta a sua pintura e fala de cura. O vídeo traduz aquilo que gostaria de ver representado de forma atualizada num museu sobre a identidade indígena.

Jaider Esbell recorre a uma série de objectos, à performatividade das suas mãos e a uma câmara de telemóvel para criar um misto de videoarte e evocação animista. Joga com a tensão, inclusive sonora, entre pequenos objectos com grande valor emocional, cultural e espiritual (machadinhas, pedras de moer, uma tanga de missangas) e vidros e molduras douradas que citam quer os vidros que protegem o património nos museus - mas aprisionam os corpos indígenas expostos -, quer as molduras douradas que no topo da sala 4 - onde se encontram esses corpos - enaltecem novecentistas membros de uma associação europeia de arqueólogos (incluindo quem trouxe os corpos do Peru).

Marilya Hinostroza, adota igualmente o poder da arte na legitimação da sua voz, mas de forma mais directa. Exibe orgulhosamente grandes telas de mulheres peruanas que pintou em trajes identitários do seu povo e, de forma confessional, por vezes íntima, olha a câmara frontalmente para colocar as questões éticas a partir do seu lugar de fala.

Em suma, os cinco artistas respondem à política da hierarquia visual do museu com a arte, campo imaterial onde as suas identidades procuram encontrar um lugar de afirmação, introspecção e encontro. Um campo onde se podem reinventar, religando o passado com a possibilidade de um melhor futuro.

Um outro convite foi, por sua vez, lançado a pensadores da área dos Estudos dos Museus e da Cultura Visual e a profissionais de museus com experiências e perspectivas relevantes neste contexto, para que partilhassem por escrito as suas reflexões em torno destas questões. Jacqueline Sarmiento, Nick Mirzoeff (entrevistado por Inês Beleza Barreiros), Oscar Roldán-Alzate, Viv Golding e Winani Thebele aceitaram enviar-nos uma série de textos. Estes autores escreveram a partir de lugares diversos (Europa, África, América do Sul e do Norte), tendo em comum o seu comprometimento na procura de imagens daquilo que poderia ser um “outro museu”. Em alguns casos, este é um museu vazio, ou deixa de ser um museu; noutros, é um museu-casa, que alberga uma pluralidade de perspectivas e narrativas; noutros ainda, ele parece-se com os museus que já existem, mas é aberto à mudança de modo a responder aos desafios do presente.

Link para o texto de Jacqueline Sarmiento.

Link para a entrevista com Nick Mirzoeff, por Inês Beleza Barreiros no BUALA.

Link para o texto de Oscar Roldán-Alzate.

Link para o texto de Viv Golding.

Link para o texto de Winani Thebele.

Os ensaios e textos informativos sobre questões indígenas na sua relação com problemáticas museológicas pós-coloniais (tomando o caso de estudo da sala 4 do Museu do Carmo onde estão os corpos mumificados de índios Chancay) encontram-se compilados num guia que pode ser lido no site. Inclusive é possível baixá-lo online. No entanto, foi também distribuído em mãos após impressão em risografia num formato de folheto. Desse modo, quem quiser pode livremente ler, imprimir, guardar ou partilhar o guia não-oficial da Colecção do Museu Arqueológico do Carmo. 

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Para download do catálogo não-oficial da colecção Chancay do Museu Arqueológico do Carmo.

À proposta audiovisual dos artistas convidados a enviarem-nos vídeos e à reflexão escrita dos académicos e profissionais do meio, somou-se ainda um terceiro elemento: uma performance-surpresa no próprio Museu Arqueológico do Carmo . Partiu de uma visita guiada não-oficial à sala 4 do museu, para visibilizar um tempo de poder sobre o outro, substituindo-o por um outro tempo, de busca de cura, de dignificação, de empatia no que foi vivido por outras pessoas, noutro lugar, noutro tempo. Esse tempo polissémico e multipessoal é um tempo que se aproxima, que nos aproxima, das “huacas”.

Documentação audiovisual da performance artivista

 

A palavra “huaca”, sugerida pela artista peruana Marilya Hinostroza durante as conversas desfiadas na internet durante a preparação deste projecto, significa na sua cultura, por via da língua quechua : “sagrado”. Designa lugares reverenciados, cemitérios, bem como os defuntos aos quais se presta homenagem, sendo sempre signo de respeito e reverência. Com este conjunto de imagens e reflexões procuramos levantar questões e começar a restituir a dignidade aos corpos dos dois jovens expostos no museu, fazendo comunidade com os mortos e com aqueles que há muito tempo cuidaram deles, acreditando que este acto se relaciona com as lutas políticas e o direito à auto-determinação dos povos indígenas vivos. Lançamos, pois, um convite à escuta e ao exercício de um outro olhar, não musealizado, que possa encontrar-se com o mundo na sua complexidade e imprevisibilidade. Para tal, é necessário começar por reconhecer os desequilíbrios historicamente construídos que habitam o quotidiano, para então imaginar como podem ser tecidos novos modos de relação, dentro e fora dos museus. É preciso abrir o coração e desejar a chegada de outro tempo, o tempo das huacas.

por Filipa Cordeiro e Rui Mourão
A ler | 4 Janeiro 2019 | descolonização, huacas, Museus, património