O que pode um livro

Há algum tempo chegou às minhas mãos um livro escrito por um casal de psicanalistas franceses que desde há trinta anos tem vindo a estudar, a partir de casos reais, a ligação existente entre o trauma, pessoal ou colectivo, e a loucura. O livro intitula-se Histoire et trauma: La folie des guerres, de Françoise Davoine e Jean-Max Gaudillière. Trata-se de uma obra fascinante e complexa que, pelo viés de múltiplas histórias analisadas por terapeutas de distintas correntes e lugares, salienta a necessidade de historizar, isto é, de recordar com outros, os pontos cegos que ficam na vida das pessoas após um trauma. Por outras palavras, a única maneira de reconstruir a narrativa individual e social é que estas zonas sombrias sejam trazidas à luz do dia e ganhem existência. Segundo os próprios autores, reflectindo sobre a complexidade do dilema “o que não é possível dizer também não é possível calar.” Todos nós em algum momento das nossas vidas, sentimos o alívio que é poder partilhar alguma coisa que nos afecta e, percebemos que quem nos ouve, para além de nos compreender, valida e legitima com o seu olhar ou com as suas palavras o que estamos a sentir, confirmando assim que não estamos loucos.
Este livro teve um eco especial em mim, já que a sua leitura coincidiu com um novo emprego que tive como historiadora no Archivo de la Vicaría de la Solidaridad, em Santiago de Chile. O meu trabalho consistia em investigar e atualizar a informação procedente dos processos judiciais instruídos por  esta instituição , em defesa das vítimas das violações dos Direitos Humanos no Chile, entre 1973 e 1990. A Fundación de Documentación y Archivo de la Vicaría de la Solidaridad foi criada em 1992, com o objetivo de tratar e guardar os arquivos de informação e documentação da Vicaría de la Solidaridad, assim como do organismo que a antecedeu, o Comité de Cooperación para la Paz en Chile.
O Arquivo da Vicaría, cujo orçamento é limitado, e apoiando-se na abnegação de quem ali trabalha, não só tem conservado documentos relevantes da história chilena deste período, mas tem sido sobretudo um apoio fundamental para as vítimas e os seus familiares na sua procura da verdade e de reparação. Apesar de já ter passado muito tempo desde a ocorrência dos factos políticos, são muitas as pessoas que visitam e recorrem ao Arquivo. Em primeiro lugar, encontram-se as próprias vítimas sobreviventes à procura das provas da sua dor. Mas também acorrem ao Arquivo as famílias, filhos, netos e bisnetos tanto de vítimas como de torcionários, que procuram saber e que querem conhecer os factos em que estiveram envolvidos os seus familiares. Há também os investigadores e os estudantes que frequentam o Arquivo e que sabem que ali existem ainda muitas histórias que devem ser contadas. Hoje, no mundo, os arquivos de Direitos Humanos cumprem um papel fulcral nas sociedades em que se inserem: para além de colaborarem com a Justiça, estes arquivos conservam a memória e permitem que as gerações seguintes revisitem a sua história, a fim de compreender os seus medos e, de assim  se colocarem na situação de iniciar um processo de reparação. Pode afirmar-se que estes arquivos, para muitos cidadãos são uma fonte essencial para recordar momentos, que embora não os tenham vivido, os fazem sofrer.
Até agora, só tinha ouvido falar do conceito de pós-memória. Para mim, presentemente, este conceito adquiriu vigência e tornou-se urgente compreendê-lo. A pós-memória surge no interior dos estudos sobre a memória, e procura compreender os efeitos traumáticos herdados pelas gerações seguintes àquela que sofreu os efeitos diretos das guerras, das ditaduras e das repressões sociais ou raciais. Esta memória tardia, complexa e sempre conflituosa e dolorosa, pode afectar tanto indivíduos como a sociedade no seu conjunto.
Este conceito foi criado por Marianne Hirsch, ligado à geração dos filhos do Holocausto, que é aliás o seu caso. No seu livro A Geração da Pós-memória explica que este tipo de memória se carateriza pela “relação que os descendentes de pessoas que viveram eventos traumáticos, mantêm com estas vivências que muitas vezes ocorreram antes do seu próprio nascimento. No entanto, estas memórias foram-lhes transmitidas de forma tão profunda que acabam por ser entendidas como próprias (…) A memória herdada é diferente da recordação daqueles que foram de facto atingidos pelos acontecimentos”.
Volto constantemente à definição de pós-memória de Marianne Hirsh e penso que, no Chile, são muitas as histórias que ainda não foram contadas. Talvez seja o Teatro que esteja mais à frente na produção desta narrativa, na medida em que tem levado esta reflexão ao palco, permitindo assim que o público estabeleça uma relação com as feridas do país (e as suas). Estou a pensar, nomeadamente, em nomes como os de Guillermo Calderón e as suas obras EscuelaMateluna e Discurso, entre outras. 
Também na literatura e no jornalismo têm vindo a ser publicadas obras que procuram pesquisar e narrar esta etapa dolorosa da história chilena a partir da perspetiva dos próprios sujeitos que a viveram. Na obra Historias de clandestinidad : Cuatro testimonios (1973-1990), a autora, Sofía Tupper Coll, torna-o claro logo nas primeiras páginas: 
               “A minha intenção não é a de contar uma verdade. O meu compromisso é relatar os factos nas palavras  dos próprios protagonistas.”
E, para quem julga que isto é passado, que não vale a pena ficarmos presos a uma história que aconteceu há quarenta anos, as palavras de William Faulkner constituem um lembrete importante “O passado nunca morre, nem sequer é passado”. E por isso vos convido a ver como este passado continua no presente hoje do Chile: o passado ressurge na Assembleia Nacional, nas palavras do Deputado Ignacio Urritua, que acusou as vítimas de violações de Direitos Humanos de “terroristas com bolsa”. Mas esse passado também está presente na resposta de Alejandro Fabres, detido e torturado com 16 anos, na secção do correio do leitor do jornal El Mercurio (21.4.18): “Às vezes é complicado esquecer. Às vezes queremos fazê-lo, mas quando aparecem personagens como o senhor, a chamarem-nos de terroristas por nos termos oposto a uma ditadura cívico-militar, e por nos termos defendido de quem nos tentava matar a qualquer preço, as recordações mantêm-se. Espero sinceramente e de todo o meu coração que nenhum dos seus filhos, netos, bisnetos ou tataranetos tenha de viver a experiência de um lugar de tortura.”

No ano passado assisti à apresentação de um livro no Arquivo Nacional, Purísima de Louqueén , de Hernán Bustos, onde pude sentir, rodeada pela família e os amigos do autor, o efeito reparador que uma história pode criar. O livro relata a vida de Purísima Elena Muñoz de Maureira, mulher de Sergio Maureira Lillo e mãe de Rodolfo Antonio, Sergio Miguel, Segundo Armando e José Manuel. Todos os seus foram detidos e desapareceram em 1973. Os corpos foram descobertos em 1978 no lugar de execuções conhecido como Hornos de Lonquén. Este facto marcou toda a nossa geração. Já nada podia ser ambíguo, nada podia ser relativizado, e ninguém honesto que olhasse em redor poderia escapar ao que se vivia à volta destes fornos, símbolos do horror. É um livro lancinante, um testemunho da dor, da injustiça e da barbárie. Mas é também um belo testemunho de uma mulher que consegue continuar a viver depois do inferno graças ao amor da família, à tristeza e à alegria partilhadas.
É, pois, desta forma que um livro pode produzir em nós muitas reações que nem sequer compreendemos. Um livro pode levar-nos a ler mais livros; um livro acorda emoções adormecidas; permite reexaminar a nossa história e, às vezes, refletir sobre o modo como queremos continuar a nossa vida. Isto tudo é o que pode fazer um livro.
 
Françoise Davoine e Jean Max Gaudilliere, Historia y trauma, la locura de las guerras, Argentina: Fondo de cultura económica, 2011(tradução de Mariana Saúl).
 
Sofia Tupper Coll, Historias de clandestinidad. Cuatro testimonios (1973-1990), Chile: Ediciones B, 2016.

 

_________________

Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS – Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horizonte 2020.

por Ana Tironi
A ler | 11 Setembro 2018 | guerra, Pós-memória, trauma