O nacionalismo militante em o "Livro dos rios", de José Luandino Vieira

A expressão “nacionalismo militante” confunde-se, em conceito, com o termo “resistência” - já pensado e formulado entre os anos 1930 e 50, quando vários intelectuais se engajaram na luta contra o fascismo, nazismo, franquismo, salazarismo e, sobretudo contra o colonialismo. Ao longo desses anos firma-se uma frente de carácter libertador que, nas lutas de guerrilha, procura a libertação do jugo colonial. É um período muito candente, de união de forças, esforço intelectual e popular, pressistente na memória dos escritores ou narradores e que produz a chamada literatura militante ou de resistência. A literatura assume uma face neo-realista e os escritores despem-se de preconceitos, crenças, origens e raças desiguiais e tiram partido do imaginário e das experiências para plasmarem uma linguagem aderente ao real e aos valores do progresso, justiça e liberdade. O neo-realismo da literatura significa também a libertação das normas de escrita mais convencionais.

O nacionalismo politico-militante procura também a revolução no plano da narrativa e numa estilização da linguagem. O espírito inquieto das vanguardas, desse tempo conturbado, exige uma escolha sóbria, lúcida, sem ilusões literárias, sem individualismos exagerados, comprometida apenas com o que liberta o homem do jugo colonial.  As opções de cada escritor, por mais diferenciadas que fossem, provêm todas de um mesmo pano de fundo, de uma mesma base, de uma mentalidade anticolonial gerada dialecticamente como um grande não lançado à ideologia dominante.

Nesse tempo, a literatura angolana desempenha um papel importante; é responsável pelo ecoar do grito de libertade de uma nação, de um povo, por muito tempo silenciado, mas jamais esquecido. Os escritores angolanos vivem, por muito tempo, entre duas realidades: a sociedade colonial e a sociedade angolana. Sua escrita é, por isso, reflexo dessa tensão existente entre estes dois universos, o último dos quais com traços de ruptura.

Este trabalho procura mostrar que a Indepednência Nacional, alcançada em 11 de Novembro de 1975, foi fruto não só das armas e catanas dos guerrilheiros, mas também, 
e sobre tudo de escritores, que, com sua caneta, esboçaram e apresentam, nas suas narrativas, um projecto de revolução e uma inciciativa de mudança de situação em que se encotrava a sua sociedade, para um modus vivendi puramente angolano. Analisa de maneira especial a obra do escritor angolano José Luandino Vieira considerado, sem sombras de dúvidas, pela crítica, como um dos expoentes mais elevados da literatura angolana, e procura detectar e destacar nela uma tensão interna que a faz  resistente, revolucionária, nacionalista, militante, enquanto narrativa, e a faz sui generis em termos de estilização da linguagem.

O Nacionalismo Militante na Literatura de José Luandino Vieira
O empenho dos escritores angolanos foi diversificado no modo como exteriorizaram, em termos políticos, os seus sentimentos e anseios. Mas havia um ponto comum nas suas obras: o homem angolano, consciente ou não das forças que tentavam mantê-lo atado, mesmo assim resistindo, por vezes de forma desajeitada e pouco contundente, ao domínio colonial.

Nas suas obras pressente-se o prolongado e doloroso nascimento do nacionalismo, através de uma narrativa de anseios, de frustrações e conflitos nos quais estão envolvidos os personagens, constituindo uma réplica do que se passava na sociedade de Angola. “
[…] Os intelectuais angolanos têm vindo a utilizar, durante os últimos cem anos, a palavra escrita como arma contra o colonialismo português”. (NETO, 1988: 13)

Um desses escritores é, sem dúvida, Luandino Vieira.

José Luandino VieiraJosé Luandino VieiraJosé Luandino Vieira nasceu em Maio de 1935, em Ourém, Portugal. Mudou-se com a família para Luanda ainda muito novo. O pai, sapateiro, integrava aqueles grupos de portugueses que partiram para a colónia em busca de melhores condições de vida. Fez os seus estudos primários e secundários em Luanda. A infância e a adolescência, passadas nos musseques do Makulusso, Quinaxixe, etc, deixam marcas profundas na sua formação e no seu trabalho de escritor. A sua identificação com a cidade de Luanda é alvo de indisfarçada paixão e presença muito significativa nos seus textos1
, de tal modo que mudou o próprio nome: José Mateus Vieira da Graça torna-se José Luandino Vieira. Após a independência do país é-lhe atribuída oficialmente a cidadania angolana.

Participa no movimento de libertação nacional, pois “desde a origem das colónias, sempre se encontraram europeus para se insurgirem contra os crimes da colonização ou mesmo contra a própria colonização” (KI-ZERBO, 2002:165), e por militar contra a ditadura colonial é preso pela Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) e transferido para Santiago de Cabo Verde, onde passa vários anos de reclusão. É de novo preso em 1961 e, desta feita, condenado a 14 anos de prisão. Foi libertado em 1972 e vive em regime de residência vigiada em Portugal. Durante a sua estada aí, trabalha numa editora e exerce a actividade de tradutor. A sua estreia literária foi feita na revista
Mensagem, da Casa dos Estudantes do Império de Lisboa, em 1950, tendo colaborado nela em anos posteriores (1961-1963) e ainda em O Estudante (Luanda, 1952), Cultura (Luanda, 1957), Boletim Cultura do Huambo (Nova Lisboa, 1958), Jornal de Angola (Luanda, 1961-1963), Jornal do Congo (Carmona, 1962), Vértice (Coimbra, 1973) e Jornal de Luanda (1973), entre outros. regressa a Luanda em 1974.


A eclosão da Revolução do Cravos, em 25 de Abril de 1974, em Portugal, fá-lo reencontrar antigos militantes, chamados de terroristas pela PIDE, que viam pela primeira vez a oportunidade de colocar em prática as ideias debatidas na clandestinidade das matas, no desconforto das prisões, ou na angústia do exílio prolongado. É então que inicia a publicação da maior parte da sua obra (na sua maioria, escrita nas diversas prisões onde passou):

A Cidade e a Infância
(1960); A Vida Verdadeira de Domingos Xavier (1961); Vidas Novas (1962); Luuanda (1964); Nosso Musseque (1972); Velhas Estórias (1974); No Antigamente, na Vida (1974); Nós, os do Makulusu (1975); Makandumba (1978); João Vêncio e Seus Amores (1979); Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto e eu (1981); De Rios Velhos e Guerrilheiros – I ou O Livro dos Rios (2006).

As datas da publicação destas obras nem sempre correspondem à ordem em que foram escritas, porque diante da sua biografia atribulada, não é fácil acompanhar o roteiro da sua produção literária.

Depois da Independência é nomeado para a televisão Pública de Angola (TPA) que organiza e dirige de 1975 a 1978; para o DOR do MPLA até 1979; para o Instituto Angolano do Cinema (IAC) de 1979 a 1984.

Membro fundador da União dos Escritores Angolanos (UEA) exerceu a função de Secretário-Geral desde a sua fundação em 1975 até 1980.

Foi Secretário-Geral Adjunto da Associação dos Escritores Afro-asiáticos, de 1985 a 1992.

Depois do colapso das primeira
s Eleições Multipartidárias em 1992 e do recrudescimento da guerra civil em Angola, Luandino Vieira abandona a vida pública, dedicando-se exclusivamente à literatura.

É galardoado com vários prémios literários, tais como:
Sociedade Cultural de Angola e Casa dos Estudantes do Império de Lisboa (1961);
Associação dos Naturais de Angola e Mota Veiga (1963);
Grande Prémio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, em 1965, pela sua obra Luuanda, escrita em 1964.

Luandino Vieira, por ter sido preso político durante a ditadura de Salazar, foi considerado 
terrorista.
Na altura eu era um jovem de 24 anos e estava preso. Tinha sido preso primeiro aos 22 anos, depois sai, depois voltei a ser preso
[…].(VASCONCELOS, 2006:4)

E sobre a obra, comenta:

[…] Nós não podemos narrar a mais pequena história de Luanda, nem a mais pequena anedota, que ela não seja forçosamente política; não se fica pelo aspecto anedótico, ou o nível sociológico não tapa os outros níveis; ressalta logo a componente política. Daí que o livro “Luuanda”, que não tem nenhuma referência política, expressamente, a não ser num caso em que alguém diz a palavra terrorista, tenha sido perseguido por se tratar de um livro perigosamente político…2


Como consequência, foram encerradas as organizações culturais e cívicas, tais como a própria Sociedade Portuguesa de Escritores e a Casa dos Estudantes do Império. A fama do escritor tornou-se, por sua vez, ainda maior e «
Luuanda é, hoje, um livro canónico nas literaturas africanas de língua portuguesa, não por esse episódio […], mas porque se trata de um livro-charneira, criativo na língua literatura, questionador da ordem colonial, na sua aparente simplicidade e singeleza, restringindo-se aos espaços do musseques […].

Luuanda é […] a primeira pedra basilar da independência narrativa angolana […]
3.

Edifício sede da União dos Escritores Angolanos, Luanda.Edifício sede da União dos Escritores Angolanos, Luanda.
Em Maio de 2006 é distinguido com o
Prémio Camões, “o maior galardão literário de Língua Portuguesa”4, tendo negado recebê-lo por questões pessoais, íntimas e de consciência que não se resolvem em praça pública (cf. AUGUSTO, 2006:22).

O Livro dos Rios: Revolução e Guerrilha

O Livro dos Rios é uma narrativa em primeira pessoa:

Eu Kene Vua, guerrilheiro […]. (VIEIRA, 2006:21)

Os finais dos anos 50 e princípios dos anos 60 são caracterizados por uma intensa agitação política em Luanda, capital de Angola, levada a cabo pelo movimento de libertação. Como consequência disso, vários escritores angolanos, dentre os quais José Luandinho Vieira, juntamento com o povo anónimo, são presos pela PIDE. Outros intelectuais, porém, partem para o exílio e aderem à guerrilha.

A Literatura angolana neste período aproxima-se do neo-realismo, é e muito florescente, devendo-se a essa época a maior parte da produção literária que hoje conhecemos. E endende-se, pois não havia escritor que não utilizasse a arte da palavra e, consequentemente, a da linguagem, que não visasse denunciar os maus-tratos e as injustiças do jugo colonial, para uma liberdade, para a autodeterminação, enfim, para a independência, como bem demonstra Rita Chaves:

A história das letras em Angola se mistura ostensivamente à história do país. […] O processo literário se fez seguindo a linha das lutas para conquistar a independência nos mais diversos níveis. Surgida no contexto colonial, a Literatura Angolana marcou-se pelo sêlo da resistência e, sobretudo a partir dos anos 1940, alinhou-se entre as forças decididas a construir a nacionalidade angolana, participando de movimentos empenhados na construção de uma identidade cultural.(CHAVES, 2005:20)

A literatura reivindicativa desses anos tornou-se numa literatura militante.

Estamos em 1965. O personagem principal, Kene Vua (nome que lhe-é atribuido drante a guerra), um intelectual angolano, faz um percurso que o leva dos musseques de Luanda a embrenhar-se pelas matas do Maquis
5 para aderir à guerrilha revolucionária – “fenómeno que constitui a preocupação central para os escritores angolanos entre os anos 60 e 70” (R.CHAVES). E vai descrevendo a geografia (hidrografia) da região, localizando o espaço onde decorre a narrativa como uma paisagem humanizada em que todos os elementos são dotados de ânimo (alma). Nas matas, dentre os amigos que conhece, e acolhem-no, estão os rios:

Conheci rios: rios antigos, jimbumbas na pele da terra angolense, cicatrizes que nascem eterno sangue, uma água cega. E rios novos, rios de águas dormidas, lágrimas acordadas a tiro e catanada. Rios amigos quando ainda as matas eram nossas […].  (VIEIRA, 2006:21)

E enuncia, a cada passo da narrativa, os rios que ele conheceu:

O Kwanza, todo ele de braços abertos (VIEIRA, 2006:12); O Lukala, em Massangano. Rio de caudaloso curso, tributo de imensa água no nosso pai Kwanza” (VIEIRA, 2006:15); o Mukozo, o das águas de verde chá-de-caxinde […] museu de todas as musas” (VIEIRA, 2006:.17); o Lombiji, aquele que já foi rio do ouro, águas amarelas por terras arenistas (VIEIRA, 2006:18); o Kalukala. Benaventurado. Me recebeu ainda molhado de água salgada e medo naquele ano de sessenta-e-cinco. (VIEIRA, 2006:18); o Kalandula (Ngalandula), rio de tantas matas e bases de apoio e escolho e passagem, já era minha testemunha (VIEIRA, 2006: 19)  o Nzena-Mbengu, o Bengo, onde que eram as sombras de mar de fundo das águas (VIEIRA, 2006:20); o Alukanza, rio da morte ao meio dia, um que secou depois da Indepedência (VIEIRA, 2006:20); o Luandu, o todo-poderoso Luandu, esse grande rio Luandu, o que é tigre do nosso eufrates Kwanza (VIEIRA, 2006:20).

E de tanto viver e conviver com os rios, ele próprio torna-se um deles:

[…].Também eu, sou um rio. (VIEIRA, 2006:21)

De todos esses rios, o maior deles, o que tem uma força extraordinária, como a força de toda a nação angolana que se une na luta contra a opressão colonial, o que às vezes é pai e às vezes mae, é o Kwanza
6, que a todos dá vida e de quem todos  tiram suas águas para caminharem sozinhos em seus caudalosos cursos :

[…] Rio de caudaloso curso, tributo de imensas águas no nosso pai Kwanza (VIEIRA, 2006.12), mas ouvi cantar nossa mãe Kwanza da boca aberta. (VIEIRA, 2006:21)

António Agostinho Neto (declaração de independência de Angola, Novembro de 1975, Luanda)António Agostinho Neto (declaração de independência de Angola, Novembro de 1975, Luanda)
Nas matas africanas, a guerrilha que não se aliasse aos rios estava condenada à derrota; eram os rios que forneciam o manancial necessário para refrescar a vida dos guerrilheiros para assim serem capazes de sustentar, por longo tempo, a luta a que se propuseram a levar a cabo contra o colonialismo. Era dos rios que retiravam o alimento para terem a força que precisavam para seguir em frente; era nos rios que depositavam seu cansaço, o suor de longas e intermináveis caminhadas para refrescar a alma e a mente, para pensarem só no seu ideal; mas era também nos rios que perdiam as suas vidas, se a prudência e a dextreza não estivessem do seu lado:


O Alukanza, rio da morte ao meio dia, um que secou depois da indepedência. (VIEIRA, 2006:20)

Nas matas, o herói está a ser perseguido por fuzileiros que o querem matar por o considerarem como terrorista
7:

Eles nunca iam me caçar […], mas tenho de sair embora nessa água do meu rio. E ouço de novo aquele silêncio perigoso do barco de borracha. Calou. Eles iam vir pela margem do Muíje, chapicando pé e perna, a Gê-Três apereada em posição de rajada […]. Vejo, olho e tremo[…].(VIEIRA, 2006:25)

Kene Vua não deixa de escapar da sua boca nomes de personagens que teimam em navegar na corrente do rio da sua memória; personagens cuja lembrança e coragem vão lhe emprestar a força que precisa para vencer seus perseguidores e vai, juntamente com esses personagens, ganhar a luta:

Henrique Dias (Ndiki Ndia) ou simplesmente Andiki - comandante de coluna na vida e no sonho;
Camarada Ferós – homem muito respeitado, militante, catequista e professor, comissário politico da secção; Domingos João (Amba-Tuloza) ou apenas Batuloza – sapador, colega no destacamento, que mais tarde vira reaccionário; Pioneiro Mbuijilu; e tantos outros.

E nas matas, Kenu Vua não consegue fazer calar e denunciar eventos que nadam contra a corrente do rio da sua mémoria, eventos que eram comuns na guerilha, como aquele que envolve o sapador Batuloza, em que os companheiros têm de votar à favor ou contra a condenção do sapador, que virou reaccionário, sabotador, traidor, cobarde e ladrão do povo.

O autor quer com isso mostrar quão dura e rigorosa era a disciplina da guerrilha –
dura lex sed lex. Era dura, mas tinha de ser implementada para servir de exemplo para aqueles, cujas acções, na guerrilha, não pactuavam com o projecto social a qual tinham aderido: lutar pelo povo.

Roubaste o povo, sujaste a nossa luta […]. (VIEIRA, 2006:42)

Durante as lutas pelas independências, houve relatos de movimentos de libertação que tinham como projecto teórico lutar para libertar o povo do jogo colonial. Porém, muitas vezes se registava, na prática, algumas práticas hediondas, actos desumanos contra o povo pelo qual diziam lutar: pilhagens, roubos, violações às mulheres, recrutamento compulsivo de jovens e crianças, trabalho forçado, imposição para produção de alimentos, carregamento de material belicoso, longas caminhadas, torturas e assassinatos a pessoas suspeitas de pactuarem com o inimigo, etc.

É o lado negro da guerrilha, que a história vai revelar um dia.

Domingos João, o nosso Batuloza – guerrilheiro, sapador competente, com o qual a secção (a mais pequena repartição de uma unidade militar) emboscava muito bem e obtinha resultados de recuperar material - tinha roubado o povo, e como rezam os princípios da guerilha, um tal indivíduo tinha de ser eliminado do seio da guerrilha, tinha que morrer para dar o exemplo. Por isso prenderam-no à espera da sentença:

Continuava impávido e no Batuloza deu de se estorcer todo pelo chão, parecia aquelas palavras eram a gasolina dum fogo que ele ia lhe arder com ele por aí. (VIEIRA, 2006:40)

E Kene Vua é o escolhido, primeiro para integrar a comissão
ad hoc de inquérito improvisada, depois para executar da sentença do enforcamento:

Fui lhe enforcar naquela manhã e a mata do Kialelu estava cheia de pássaros e flores, o mês já não me lembro mais, não chovia porém, não tremi.(VIEIRA, 2006:47)

Depois de executada a sentença, a consciência pesada do herói pede que mude de identidade, quer trocar de nome, de Kene Vua quer passar a charma-se Kapapa, pois as águas do rio da sua memória, debaixo do nome de Kene Vua, trazem sempre à tona o enforcamento do companheiro; a imagem do Batuloza flutua incessantemente no seu pensamento, produzindo uma espécie de remorso, arrependimento psicológico, peso de consciência:

- E eu ia de ver nos seus olhos de ódio que nâo ia me perdoar nunca essa vergonha de morrer com medo. (VIEIRA, 2006:65)

Agora minha alma escorre funda como esses rios – vou procurar o pau na mata do Kialelu, quero desenforcar aquele, o do sangue sujo, camarada meu; e voltar a bala, regressar o sangue, rio escorrido no quilunzar daquela tarde no man´Soto […].(VIEIRA, 2006:98)

E isso resulta?

Por poucos instantes parece ter surtido o efeito desejado, porém o remoínho do rio da sua consciência, já no final da narração, traz de volta, a boiar, o corpo cadavérico do companheiro, que ele próprio enforcou:

Kapapa!, eu berrei, salvo e nu. E mergulhei na quicanda dos luandos, era meu enorme colarinho verde, subia a corrente, eu ainda não tinha vestido a corda no pescoço do Amba-Tuloza, podia sentir o doce do meu enforcamento, a alegria de ir rio acima.(VIEIRA, 2006:125-26)

A recorrência constante à memória do Batuloza denuncia o arrependimento, o remorse, o peso de consciência do herói, que era suposto matar ou enforcer o inimigo ou os seus perseguidores em vez do companheiro. Quer assim fingir (apenas na memória) que o acto ainda não se consumou, que suas mãos estão limpas do sangue do companheiro, que Amba-Tuloza ainda está vivo – o que confunde qualquer leitor atento:

Amanhã, na madrguda de ir enforcar o Batuloza, tenho de recomeçar o meu ximbicanço.(VIEIRA, 2006:126)

Este trecho entra emu ma espécie de contraste ou choque temporar nítidamente com aquele que consuma o acto de enforcamento do Amba-Tuloza. Já anteriormente referenciado:

Fui lhe enforcar naquela manhã e a mata do Kialelu estava cheia de pássaros e flores, o mês já não me lembro mais, não chovia porém, não tremi.(VIEIRA, 2006:47)

Isto é uma demonstração clara de que o herói não está em paz consigo mesmo e com sua consciência; que seu eu interior está em conflito com seu eu exterior; que sua consciência está em conflito com sua acção; que Kene Vua está em conflito com Kapapa. Aliás, a própria narração é já um conflito em si, em que encontramos um opositor-inimigo (coloniaslimo, nas personagens dos perseguidores fugilheiros), um herói perseguido (kene Vua ou kapapa) e coadjuntes (na pessoa dos rios e dos companheiros de luta).

A narrativa morre com a evocação do rio dos rios:

O
Kwanza que rodeia a patria da nossa luta; missão, agora era de lhe dar encontro no princípio desse rio, nos seus três fios de água, lá nas altas serras do Bié8 – onde que o mundo acaba e todas as águas começam. (VIEIRA, 2006:126)

Braço do Rio Kwanza.Braço do Rio Kwanza.

Conclusão
Publicado em 2006, depois de uma espécie de adormecimento prolongado de José Luandino Vieira, que vinha desde 1981, com a publicação de Lourentino, Dona Antónia de Sousa Neto & Eu, o Livro dos Rios, o primeiro de uma prometida trilogia – De Rios Velhos e Guerrilheiros, é uma ousadia do escritor, cuja articulação dos opostos ou a desconstrução frásica constituem as linhas-de-força do seu texto.  Publicado três décadas depois da Independência, o livro dos Rios retoma  alguns aspectos da história e da literatura angolana. Apesar dessas décadas terem testemunhado profundas mudanças no país, a relação estreita entre literatura e sociedade continua a ser um traço característo da actividade literária. A narrativa de Luandino Vieira, no Livros dos Rios, sem deixar de estabelecer conexões com os seus outros textos, aborda o fenómeno do nacionalimo militante:  o combate ao colonialismo e a luta armada de libertação nacional, que foram vital na literatura angolana comprometida com o projecto de construção de um estado nacional.

Luandino Vieira traz-nos, com a corrente das águas dos rios angolanos, a luta armada, iniciada a 4 de Fevereiro de 1961, e juntamente com esta um guerrilheiro que, na sua própria voz, faz uma retrospectiva da trajectória da sua vida iniciada nos musseques de Luanda até às matas do Moxico, fazendo travessias, de avanços e recuos, que se misturam ao processo de construção da identidade cultural de Angola que ainda não é um estado. Kene Vua (nome que lhe fora dado na guerra) está em confronto consigo mesmo numa época em que reina uma tensão acentuada.

O rio é escolhido como a imagem principal, ao contrário dos panoramas pitorescos das cidades e musseques, aos quais nos habituou, uma escolha que nos leva à rica e vasta hidrografia de Angola, onde a dimensão do Kwanza é amplificada para se tornar o Rio dos rios, que a todos dá vida e donde tiram suas águas para caminharem sozinhos em seus caudalosos cursos, para regar as terras férteis de Angola e lavar as marcas sangrentas deixadas pela guerra, e no ritmo dessas águas, que não secam, fencudar-se a transformação e esta gerar independência – que veio a se registar em Novembro de 1975.

O Livro dos Rios, à semelhança de  outros de Luandino Vieira, investe contra o padrão “ortodoxo”, rompe com as concepções convencionais, rejeitando a sua linearidade, modificando aforismos, reiventando ditados populares, desconstruindo frases. Esta atitude propositada do autor vem confirmar que a língua será finada se for impermeável, se não for flexível, maleável o suficiente a ponto de acomodar novidades, de não aceitar no seu seio neologismos, se fechar as portas aos kimbundismos, se não abrir janelas aos umbundismos, se na corrente dos rios da língua portuguêsa não fluir os angolanismos. Então, como afirma Óscar Ribas, não é por ventura o escritor um artista da palavra, e consequentemente da língua? Não será ele um criador e um reformador?

Ao embrenhar-se nas matas do passado, o narrador nos mostra como foi  construído o presente de Angola: com luta, sacrifício, coragem, suor, derramamento de sangue. O narrador vai buscar eventos e referências que incluem Njinga Mbade, Agostinho Neto e outros ícones que continuam vivos na mémoria da sociedade angolana, trazidos pela correnteza das águas da sua história, centelhas de um fogo vivo e de uma chama que alumiará o caminho em direcção a uma identidade angolana a uma  angolanidade.

Não é um empreendimento que se apresente fácil abordar. A obra de José Luandino Vieira é, sem dúvida, um dos expoentes máximos que revolucionaram a ficção do nosso país. Os neologismos, as rupturas na sintaxe convencional, a adopção de novas gramáticas, as técnicas de montagem que exprimem diferentes concepções sobre o tempo e o espaço, criam com certeza, grandes dificuldades na apreensão da mensagem que mobiliza o autor. É preciso mergulhar profundamente nas águas desses rios que não cessam de correr no presente de Angola, para apreender a sua mensagem. 

O Nacionalismo Militante, um conceito originalmente político e que, com o andar do tempo e por força das circunstâncias, ganha contornos literários, é uma temática que atravessa toda a produção literária de José Luandino Vieira, de modo especial no Livro dos Rios, um texto que atesta a força da literatura angolana e confirma a “fieldade” do autor aos seus mais sólitdos princípios. As expressões ou referências às matas, guerra e guerrilha, emboscada, comandante, inimigo, mercenário, perseguição dos fuzileiros, prisao pela PIDE, a detenção e  espancamento bárbaros, apontam todas para a temática do nacionalismo militante ou revolucionário presente no Livro dos Rios.

É importante notar que a luta pela indepêndencia não foi apenas projecto dos políticos, e não foi apenas materializada pelos guerrelheiros. A luta pela libertação foi um projecto de toda a sociedade angolana, ao qual aderiram também escritoires como Luandino Vieira. A literatura teve tanto poder quanto tiveram os canhões, as armas, as catanas, as granadas, as bazoukas, as Gê-Três, os “Kanyangulos” dos guerrelheiros. Os intelectuais angolanos, durante longos anos, serviram-se da palavra escrita para lutarem contra o colonialismo.  Um desses intelectuais é José Luandino Vieira, que foi um militante na acção e na criação, no fazer e no escrever.


Adis Abeba/Etiópia, 2010

Referências Bibliográficas
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–––––––-,2003, A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, Luanda, Nzila, 111 p.
–––––––-, 2004, Nós, os do Makulusu, Luanda, Nzila, 158 p.
–––––––-, 1997, Luuanda, Lisboa, Edições 70, 176 p.
AUGUSTO, José, 2006, “Luandino Vieira e Arnaldo Santos na Huíla, in Cruzeiro do Sul, Ano II, nº 64, 25 de Novembro, pg.22.
6.       S/A, 2006, “Luandino diz ‘não’ ao Prémio Camões, in Jornal de Angola, 25 de Maio, pg. 15.
VASCONCELOS, J. Carlos et al., 2006, “Luandino Vieira, Prémio Camões”, in Jornal de Letras, Artes e Ideias (JL), Ano XXVI, nº930, pp.2 – 5.
LARANJEIRA, Pires, 2003, “A Infância no Musseque da Pátria”, in Jornal de Letras, Artes e Ideias (JL), Edição Especial, 30 de Abril, pg. 19 – 20.
DOS SANTOS, Joelma G., 2007, “Silêncio e Liberdade em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, de José Luandino Vieira” (Trabalho apresentado à professor Doutora Zuleide Duarte como requisites da disciplina de Literaturas de Língua Portuguêsa).
DOS SANTOS, Joelma G., s/a, “Nós, os do Makulsu, de Angola: Luandino Vieira e o despertar para uma consciência e uma literatura nacionais”.
CHAVES, Rita, 1999, A Formação do Romance Angolano (entre intenções e gestos), S. Paulo, Atlântica, 221 p.
CHAVES, Rita, 2005, Angola e Moçambique: experiência colonial e territories literários. Cotia: Ateliê.
KI-ZERBO, Joseph, 2002, História da África Negra – II, Paris, Mem Martins, Europa-América, 472 p.
NETO, Agostinho, 1988, Sagrada Esperança, Rio Tinto, Asa, 150 p.
RIBAS, Óscar, 2009, Uanga (Feitiço), Luanda, Instituto Nacional do Livro e do Disco, 340 p.

  • 1. Mais de cinquenta vezes aparece a expressão “nossa terra de Luanda” em Nós, os do Makulusu.
  • 2. VIEIRA, L., Luuanda, 1997, Edições 70, Lisboa, (Contracapa).
  • 3. [3] Excertos de Pires Laranjeira publicados em 30/4/ 2003 e citados pelo JL, Ano XXVI/nº 930, de 24/5 – 6/6/2006, pg. 3.
  • 4. [4] S/a, “Luandino diz ‘não’ ao Prémio Camões”, in Jornal de Angola, 25 de Maio de 2006, pg.15.
  • 5. [5] De macchia (italiano), significa curso de moita onde se entocaiavam os resistente. Em Angola refere-se a uma área da Província do Moxico, situada na parte leste e que faz fronteira com a República da Zâmbia.
  • 6. [6] O Rio Kwanza (que dá nome a moeda nacional de Angola) é o maior rio de Angola, com cerca de 1000 km de extensão e uma bacia hidrográfica que ocupa uma área de 147.690km2. Nasce a sul do Bié e desagua no mar, a sul de Luanda.
  • 7. [7] Era este o motivo principal pelo qual vários políticos, intelectuais, escritoires angolanos conheceram as agruras das cadeias da PIDE, e alguns deles foram torturados e mortos, e estes deixaram sempre quem cantasse os seus feitos e quem perpetuasse a sua memória.
  • 8. [8] Província Angolana situada no planalto central, donde nasce o grande Rio Kwanza, que desagua na parte sul de Luanda.

por Francisco Kulikolelwa Edmundo
A ler | 19 Março 2013 | angola, literatura angolana, nacionalismo, Portugal