O Crioulo como Estratégia de Desenvolvimento

Desenvolvimento é um conceito em permanente mutação e eventualmente vítima daquilo que ele próprio tenta identificar. No fim da segunda guerra mundial, com o início do paradigma pós-colonial, a economia foi buscá-lo, receando o que poderia ser esse período. A partir daí, passou-se a olhar para o mundo de uma perspectiva modernista, evolucionista, dedicando-nos à identificação das fases de desenvolvimento dos países, dos estágios mais primitivos aos mais avançados: africanos, latino-americanos e asiáticos, numa ponta - a desprezável -, “ocidentais” na outra - a ideal. Não sendo necessário tecer grandes considerações sobre o etnocentrismo desta abordagem, é importante tê-lo presente, para que reflitamos sobre o pensamento que dominava quando se formou esta subdisciplina da ciência económica ocidental. Um dos livros ensinados a todos os que querem aprender economia do desenvolvimento nas “melhores faculdades de economia dos seus países” foi escrito por Rostow em 1959, e tinha como título: “Etapas do  Desenvolvimento Económico: um manifesto não comunista”.
Esta visão filosófica, profundamente iluminista/modernista (baseada nessa fé cega na ideia de verdade absoluta), cujos interesses coincidiam com os interesses económicos e políticos ocidentais das estruturas dominantes, explorou o conceito de desenvolvimento anteriormente citado pondo-o em prática.
Neste contexto, é compreensível a insistência em impor as línguas europeias como línguas oficiais nas ex-colónias, sob a defesa de que estas eram as únicas que poderiam permitir o progresso e a modernidade. Elas tinham várias funções: reduzir ao mínimo os mais simples processos de comunicação entre o cidadão e o Estado; garantir a perpetuação do insucesso dos sistemas educativos, mantendo o sistema de dominnaçao das elites locais – essas que já faziam parte do sistema colonial europeu e que, no período pós-colonial, continuaram a sustentá-lo; construir a base do sistema legal, económico, político e institucional, virado desde o início para os países do norte, para a metrópole, na perpetuação da dependência e através dela, a exploração, tal qual o era durante a colonização, trocando-se apenas a cor das elites que dão a cara, entre outras.

O crioulo, enquanto língua, surgiu da necessidade de comunicação de sociedades colonizadas com o regime colonizador, sendo em muitos países a língua de unidade nacional. Considerando pouco funcionais as línguas maternas, as sociedades colonizadas recorreram ao saber linguístico do modelo imposto para construir uma forma de linguagem veicular mais simples, a que hoje chamamos crioulo. Ulf Hannerz, autor que se debruçou sobre o conceito de crioulização, defende que as culturas não são mais vistas como limitadas ou autónomas, uma vez que os fluxos transculturais complexos e assimétricos as têm transformado (1992: 264). O mesmo autor afirma que vivemos num “mundo creolizado”, não susceptível de resultar numa homogeneização global. Consequentemente, a crioulização cria uma maior afinidade entre as culturas, sendo que alguns dos seus novos produtos culturais se têm tornado cada vez mais atraentes no mercado global (Hannerz 1992: 265-6), por exemplo, a música africana, tipicamente crioulizada tem-se tornado “músicas do mundo”. Contudo, os processos de hibridização que se verificam ao nível da música e mesmo da gastronomia, não se verificam ao nível linguístico. Carlos Lopes, no que se refere às ex-colónias portuguesas de Guiné-Bissau e Cabo-Verde, inferiu que “o crioulo durante a longa noite colonial foi sistematicamente desprezado, considerado um dialecto redutível ao português, falado por africanos, proibido no ensino” (1988: 227). Assim, reprimido durante o regime colonial, veio a ter a sua forte expansão com o movimento de libertação que deste se serviu para passar a sua mensagem independentista. Mas atualmente, apesar de ser uma língua autónoma do ponto de vista gramatical e lexical, o crioulo não é reconhecido como língua de ensino, nem há esforços visíveis no que concerne à consolidação da sua codificação escrita. Todavia, este é sistematicamente utilizado pelo governo, Igrejas, ONGDs e empresas privadas sempre que pretendem alcançar o grosso da população. Consequentemente, campanhas eleitorais, publicitárias ou evangelizadoras são redigidas em crioulo, assim como a língua utilizada nos meios de comunicação falados (rádio e televisão).
A construção de um modelo de desenvolvimento baseado numa língua distante e falada apenas por minorias, mantém o tecido social e produtivo desconexo, limita os mecanismos de transmissão de conhecimento ao tornar a escola um espaço inadequado a uma aprendizagem profícua, envolto em línguas que existiam para as comunidades apenas no abstracto, dificultando a construção da identidade, prosseguindo-se assim o processo de desterritorialização iniciado com a colonialização. A distância entre a educação veiculada por diversas instituições e as populações, através da simples limitação linguística, enfraquece os movimentos de contestação. Por outro lado, dificulta a construção de um sistema económico que dá valor ao que já existe na própria sociedade e segue ignorado, uma vez que se mantém a ideia de o aquilo que tem valor vem de fora, isto é, a língua distante, o dólar ou o marco, os produtos estrangeiros, etc.

Consequentemente, impede-se a autonomização das sociedades dos chamados países em vias de desenvolvimento, mantendo-os o mais tempo possível numa relação de dependência com a metrópole, por se colocar num plano teórico (o desses modelos económicos que se debruçam sobre pessoas e sociedades que não existem) ao mesmo nível aquele ali ao lado e aquele de quem não se conhece o rosto (e que por vezes nem sequer tem, como os flamigerados mercados internacionais a quem se vende diariamente algodão, café, carvão, e tantos outros), enquanto que de um lado prático o diferencial de capital faz o resto. A vulnerabilidade perpetua-se e com ela reduz-se o poder negocial daquele que depende mais, pois as regras das instituições abstractas dizem-lhe diariamente o que ele não tem. Estamos assim perante um modelo de desenvolvimento em que a “estratégia linguística” vigente dá o seu forte contributo, transformando o autóctone em sem-terra, num ser expropriado, dando lugar ao processo descrito por David Harvey - “acumulation by dispossession”-, obrigando-o a deslocar-se para onde o seu trabalho seja necessário, engrossando assim o exército industrial de reserva, disponível para receber em troca do seu trabalho o mínimo possível para garantir a sua subsistência.
Será essencial para o desenvolvimento dos países africanos, a afirmação do crioulo enquanto língua oficial? Sim! Mas para isso, é necessário dar ao conceito de desenvolvimento um novo entendimento (dentro de uma perspectiva da ciência económica ocidental, e que já esta incorporado noutras ciências sociais), encarando-o simplesmente como o processo em que as pessoas ganham controlo sobre as suas próprias vidas (Erisken, 2001). Nesta abordagem, o crioulo poderá contribuir de duas maneiras distintas: como diferenciadora e fonte de construção identitária, não lhe negando as línguas e dialectos de base que a constituem (pelo contrário, ao aceitar o carácter regional do crioulo, aceitam-se as línguas dessa mesma região). Por esse motivo, não se deve formalizar o crioulo da mesma forma que foram formalizadas as línguas noutros lugares, evitando forçar a repetição de processos históricos à imagem dos processos que levaram à formalização (e conceptualização) das línguas europeias. Adicionalmente, é necessário ver o crioulo como elemento englobador, promotor de abertura e de partilha (não da língua em si, que o crioulo é por definição múltiplo, mas do que o conceito reflecte), que promova a cooperação entre as diferentes comunidades, que assim beneficiarão quer da proximidade geoeconómica quer de um passado colonial comum e que lhe deixou essa herança linguística que poderá funcionar como elemento aproximador, e através do fortalecimento dessas relações se ultrapassar as tradicionais relações de dependência com os países do norte.

Bibliografia
Augel, Johannes (1997). O crioulo na Guiné-Bissau. Afro-Ásia, 19/20,p.251-254.
Augel, Moema Parente (2006). O crioulo guineense e a oratura. Scripta. Belo Horizonte,v.10 nº19, p.69-91.
Eriksen, Thomas Hylland (2001), “Between Universalism and Relativism: a Critique of the UNESCO Concept of Culture”, in: Cowan, Jane K., Marie-Benedicte
Dembour, and Richard Wilson (eds.), “Culture and rights : anthropological perspectives”, Cambridge University Press, pp. 127 – 148.
Hannerz, Ulf. Cultural complexity: studies in the social organization of meaning. New York: Columbia University Press, 1992.
Laranjeiro, Catarina (2011). A urgência do Crioulo Guinnese. Buala. Cultura Contemporânea Africana.
Lopes, Carlos (1988). Para uma leitura sociológica da Guiné-Bissau. Bissau: Inep.
Rostow, W. W. (1990), “The Stages of Economic Growth: A Non-Communist Manifesto”, Cambridge University Press (originally published in 1960).
Scantamburlo, Luigi (1997). Introdução ao dicionário guineense português. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa

 

por Catarina Laranjeiro e Jorge Filipe
A ler | 2 Agosto 2012 | criolo, crioulidadade, desenvolvimento, lingua oficial.