O colonialismo nunca existiu?

O colonialismo continua a ser um tema incómodo em Portugal. Se é verdade que tem vindo a crescer a literatura sobre o Império e a guerra colonial – muitas vezes a partir de uma memorialística com alguns traços saudosistas – também é verdade que as feridas do colonialismo continuam por sarar. A rasura do colonial surge frequentemente através de um duplo mecanismo de revelação e ocultação. Por um lado, retomam-se narrativas associadas à “grandeza pátria” e à excepcionalidade da gesta expansionista lusitana. Por outro lado, este discurso celebratório conduz necessariamente a reconfigurações semânticas, desvios interpretativos e silenciamentos historiográficos. Observe-se brevemente como isto ocorre num domínio particular, mas ainda assim publicamente relevante: os discursos proferidos pelo Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, entre 2006 e 2014, nas sessões comemorativas do 25 de Abril e do 10 de Junho.

Um olhar sobre estes discursos permite identificar a presença de cinco tópicos fundamentais relativos à questão colonial. O primeiro tópico reside na imaginação da colonização como tendo consistido essencialmente num encontro de culturas. No discurso do 10 de Junho de 2008, Cavaco Silva afirma: “Portugal não se limitou a andar pelo mundo e a conhecer vagamente outros povos com quem se defrontou ou negociou. Portugal entendeu-se e misturou-se realmente com os outros, criou raízes fora de casa, lançou as bases para novas nações e pontes para o diálogo internacional que hoje tanto reivindicamos.” 

Este breve excerto condensa três ideias fortes. Em primeiro lugar, sugere-se a benignidade do colonialismo português relativamente a outros colonialismos, vincando a diferença do seu cosmopolitismo (“não se limitou a andar pelo mundo” mas efectivamente “criou raízes fora de casa”). Em segundo lugar, define a relação histórica entre os portugueses e os povos colonizados à luz das noções de convívio e misceginação (“Portugal entendeu-se e misturou-se realmente com os outros”). Por fim, indica, de forma algo imprecisa, que “as novas nações” resultaram das “bases” lançadas pelos portugueses. O sintoma mais evidente desta leitura histórica está, não só nas palavras que se escolhem dizer, mas também nas que se entendem omitir: termos como “colonialismo”, “colonização”, “racismo” ou “escravatura” não surgem uma única vez nos 16 discursos observados.

O segundo tópico reside na evocação do “universalismo português”. É esse impulso que origina a “aventura que lançou os alicerces do mundo tal como ele se apresenta em nossos dias” (10/06/2007). Esse universalismo teria dado lugar a uma presença no mundo não apenas singular mas ainda hoje viva, estimada e politicamente útil. Articulado com este elemento, um terceiro tópico baseia-se na identificação da língua, da cultura e do património como os produtos históricos desta “vivência universalista” dos portugueses, ao qual é também associada a familiaridade com o Mar. Na verdade, o Mar surge em quase todos os discursos do 10 de Junho, sinalizando uma espécie de novo desígnio nacional que fazia ecoar a ancestral simbiose com esse elemento. Esta leitura está em linha, aliás, com iniciativas como a campanha governamental “Portugal é Mar”, que teve uma das suas facetas na obrigatoriedade de afixação nas escolas de um mapa e que mostrava que o país não era pequeno, se considerarmos as suas adjacências marítimas. 

Um quarto tópico consiste em definir como europeu o Portugal que então empreende a aventura colonial. Como é dito em 2007, “foi Portugal quem primeiro levou a Europa ao encontro de outros povos, tornando assim real e concreto o universalismo que é timbre dos valores europeus”. Se muitas das referências à Europa dão conta do contexto político actual, são também várias as expressões nos discursos que põem como actor da aventura colonial um Portugal europeu (e uma Europa entendida como farol do mundo). Em 2007, por exemplo, considera-se que Portugal foi “o rosto visível da civilização europeia nos quatro cantos do mundo”. Em 2010 afirma-se que “difundimos por toda a parte a cultura de um continente ancestral, que durante muitos séculos vivera voltado sobre si mesmo”.

Por fim, um último tópico remete para o silêncio sobre a guerra colonial - que é, no fundo, um silêncio sobre o fim do Império e os antecedentes do 25 de Abril. Com efeito, a expressão “guerra colonial” não surge uma única vez nos 16 discursos analisados. O termo “guerra”, sem mais, aparece uma única vez, no discurso de 25 de Abril de 2010, fazendo menção a um tempo em que “caía um regime cansado de guerra”. A queda do regime é assim interpretada essencialmente à luz da ditadura, dos direitos cívicos coartados e da evocação descontextualizada da acção do MFA. E a consolidação da democracia é vista como resultado da derrota do período revolucionário. Deste modo, não só se rasura a importância do processo revolucionário como se omite o papel da guerra colonial e o lugar dos movimentos de libertação africanos no desgaste decisivo da ditadura.

Estes cinco tópicos apontam para a persistência de um imaginário de traços coloniais num espaço-tempo pós-colonial. Nos discursos do Presidente, a questão colonial é deslocada através de um mecanismo que omite os processos históricos ligados ao racismo, à escravatura e à dominação económica e cultural e que, em alternativa, realça o papel da língua, do património e do Mar como elementos diferenciadores da experiência colonial portuguesa. Nenhuma destas narrativas é propriamente nova, reformulando de certo modo um conjunto de tópicos de matriz “lusotropicalizante”. Se estas interpretações do passado revelam uma dada leitura da História – e dos seus usos no presente – elas dão conta também da dificuldade em evocar a dimensão violenta do colonialismo e a forma traumática como se encerrou o ciclo do Império. Recorrendo ao título de uma recente colectânea de textos de Eduardo Lourenço, os discursos de Cavaco Silva parecem assim demonstrar a permanência do colonialismo como um “nosso impensado”.

 

Cultura e Racismo é o tema da Agenda 2015 do SOS Racismo. O BUALA associa-se publicando os textos que nela se inserem. 

por Miguel Cardina
A ler | 20 Novembro 2014 | undefined