Memória do tráfico de escravos em Angola

O tráfico transatlântico de escravos em Angola, na era colonial, foi um dos mais longos de que há memória. Um número elevadíssimo e indeterminado de africanos foi levado à força para o continente americano, a partir do século XVI.

Durante mais de três séculos, o espaço territorial de Angola esteve integrado no nefando comércio de escravos, na era colonial. As suas consequências não são de subestimar, pois decorreu num período longo, integrando o tráfico de escravos definido como transatlântico.

É conhecida a relação triangular que ligava África, América e Europa neste comércio. O “continente negro” fornecia a mão-de-obra escrava de que carecia o continente americano e que contribuiu para o seu crescimento, alargamento e desenvolvimento.

Museu da EscravaturaMuseu da Escravatura

Essa força de trabalho escrava alimentava os interesses comerciais europeus, gerando por sua vez desenvolvimentos económicos, sociais, tecnológicos, culturais e outros.

Trata-se de uma questão que acaba por se reflectir nas relações entre esses três continentes e que continua, no entanto, a ser polémica nas suas consequências, a partir dos estudos demográficos.

Apesar das limitadas fontes para um conhecimento do número real de homens e mulheres perdidos pela África, enquanto existiu esse tráfico negreiro, também conhecido como comércio triangular, os estudos apontam para os extremos compreendidos entre os 13 e os 100 milhões.

Porém, os problemas profundos e complexos que o tráfico terá ou não suscitado, se tivermos em conta a sua dimensão e as implicações daí advindas para os continentes nele engajados, opõem os teóricos que se debruçam sobre o tema.

A sua duração num movimento contínuo, durante um longo período, não teve paralelo na história, na opinião da maior parte dos estudiosos. Teria contribuído para o lançamento das condições do subdesenvolvimento de África (Rodney, 1972; Inikori, 1999), enquanto que para a Europa são apontados os benefícios desse tráfico na consolidação do capitalismo balbuciante e de incentivo ao desenvolvimento da sua revolução industrial (Williams, 1944).

Para outros estudiosos, segundo M`Bokolo, a saída de escravos negros de África para a América não passou de “migração” como muitas outras, sem grande impacto no desenvolvimento do continente (1995:15).

Acervo do Museu da EscravaturaAcervo do Museu da Escravatura

No mesmo sentido, outras opiniões apontam formas de compensação, segundo as quais as perdas demográficas teriam sido minoradas pelos produtos agrícolas provenientes da América (mandioca, milho, batata-doce, entre outros), introduzidos nos hábitos alimentares das populações africanas. A sua introdução foi bastante limitada a certas zonas do continente e o seu consumo estendeu-se a outras tardiamente.

Dominados inicialmente pelas preocupações de ordem económica, os estudos sobre o tráfico começam a abranger outros domínios. Estudos ligados a aspectos culturais e de identidade nacional ou outros (étnicos ou regionais, por exemplo), mostram a dimensão profunda da presença africana no mundo.

O papel e a presença dos escravos nas sociedades para onde foram levados à força, contribuíram para forjar novas culturas e identidades, particularmente no “novo continente”, através da sabedoria, conhecimentos, sentimentos e formas de estar.

Mais recentemente, foi reconhecida a contribuição do tráfico de dimensões não apenas económicas – vantajosas para a América e a Europa, desastrosas para a África – como também culturais e outras.

O tráfico constitui ainda facto de memória, contando com o apoio da UNESCO e de vários países.

Por um lado, deve ser lembrado para que nunca se repita no futuro. O seu conhecimento e estudo, em diferentes aspectos, tornam-se pois, uma necessidade. Por outro lado, a memória do facto histórico que foi o tráfico deve ser também revelada pela contribuição que África deu ao mundo, quer no surgimento e formação de novas identidades e culturas, quer pelo seu papel e contribuição no quadro da globalização, no qual o continente africano tem sido esquecido, de um modo geral, como se vivesse a reboque de uma evolução que decorreu e decorre em paralelo, fora ou à margem dele e não com ele.

Angola enquadra-se bem nas situações acabadas de referir, genericamente, para o continente. Mas, Angola é também um dos países enquadrados numa das regiões tocadas por esse flagelo, onde a memória do tráfico transatlântico deve estar bem presente pela sua dimensão, no tempo e no espaço.

A partir da costa atlântica, em quase todo este vasto território as sociedades autóctones foram atingidas directa ou indirectamente pelo tráfico.

A adesão de Angola ao projecto da UNESCO sobre “A Rota dos Escravos” constitui, pois, o assumir da sua história e da sua participação na formação de outros “mundos” e na construção global do mundo.

E é no levantamento e preservação dos locais de memória que Angola mais se tem empenhado no quadro desse projecto.

Apesar das dificuldades, entre as quais financeiras e humanas, diferentes actividades foram levadas a cabo que podem ser conhecidas através de um relatório onde se faz a sua síntese e se alarga um pouco mais a questão da definição de locais de memória e localização de outros (Almeida, 2001).

Em termos temporais, o tráfico transatlântico no território angolano foi dos mais longos: forneceu “os seus filhos” ao continente americano todo o tempo que este durou, tanto do durante o “tráfico ilegal” como durante o tráfico ilícito.

Razões de ordem exógenas e endógenas contribuíram para isso, quer da parte dos parceiros europeus, quer da parte dos próprios africanos. Porém, o incentivo e imposição deste comércio parecem ter partido da Europa (Birmingham, 2004).

A deslocação de escravos de Angola para a América começou no século XVI e só terminou em finais do século XIX.

Enquanto durou o “tráfico legal”, as disputas entre potências europeias fizeram-se sentir, envolvendo de início Portugal e Espanha, e depois Holanda e Inglaterra, enquanto a França disputava o comércio de escravos fundamentalmente na parte norte de Angola, ou seja, na região de Cabinda.

A participação desses países reflecte-se sobre as sociedades africanas, cujos chefes aproveitavam tais disputas para os seus jogos de interesses e lutas de poder económico e político, fundamentalmente.

Reinos como o Ndongo, Matamba e Kassanje participaram assim no tráfico, entre os séculos VXI e XVII. Uns fortaleceram-se, como é o caso da Matamba. Outros fundaram-se, como é o caso de Kassanje. Outros ainda decompuseram-se, como sucedeu com o Ndongo.

No século XVIII, os reinos sobreviventes continuam a alargar a extensão das suas fontes de abastecimento, enquanto outros passam a integrar a rede de comércio de escravos, como é caso dos Ovimbundu, prosseguindo o comércio no século XIX.

Apesar da sua abolição oficial em 1836, razão pela qual passa a designar-se “tráfico ilegal”, o comércio por parte dos traficantes de escravos aumentou de intensidade.

Para vários historiadores, tal facto é percebido, por um lado, como uma reacção de recusa do comércio por parte dos traficantes e intermediários, devido aos prejuízos que adviriam do negócio e, por outro lado, devido a imposições externas (Alexandre, 1979).

Com o Brasil, o tráfico manteve-se até por volta dos anos 50 de 1800, com a América até à Guerra da Secessão (1861-1863) e com Cuba até por volta de 1880.

O litoral de Luanda guarda vestígios do tráfico de escravos. Porém, a colónia portuguesa de Angola esteve implicada no comércio em todo o seu espaço territorial. Do litoral ao interior, de norte a sul, as sociedades africanas da maior parte do espaço geográfico angolano foram atingidas directa ou indirectamente por esse flagelo, que se instalou e durou no continente africano.

Umas, estiveram directamente implicadas no fornecimento de escravos, recorrendo a meios ferozes para os obter, entre os quais a guerra. Outras, estavam sujeitas a tais guerras como a outras formas de captura, constituindo o que se pode designar por sociedades “produtoras de escravos”. Outras ainda eram ou serviam de intermediárias no tráfico com os mercadores europeus ou com os africanos, na costa ou no interior, assegurando a guarda, o encaminhamento e o escoamento dos escravos (M´Bokolo, 2003:403).

Assim, de forma diferente e desigualmente implicadas no tráfico, pode-se no entanto dizer que, de um modo geral, as sociedades costeiras foram as principais fornecedoras de escravos, pela sua situação geográfica, enquanto que as do interior, geralmente próximas das anteriores, eram as “produtoras.”

Porém, também se verificaram excepções à regra: o caso da Kissama é exemplo disso, pois estando numa zona costeira, constituiu a área de captura nos séculos XVI e XVII, quer do reino do Ndongo quer dos portugueses, a mando do próprio governo da colónia (Ferreira, 2000:I).

Por seu lado, sociedades do interior eram fornecedoras de escravos, como o reino da Matamba, por exemplo, cujos escravos eram provenientes das capturas das guerras de expansão da Lunda, desde o século XVIII (Birmingham, 2004:149), estendendo desse modo as “as fronteiras de captura” para lá dos limites actuais de Angola.

Amarrada ainda aos laços e grilhetas do tráfico e da escravatura, é a história de um tempo de partida sem regresso, cujo conhecimento se faz cada vez mais urgente, para reflexão e decisão na construção de um futuro sem “escravos” nem senhores, sem dependência nem servilismo.

in AUSTRAL nº 67, artigo gentilmente cedido pela TAAG - Linhas Aéreas de Angola.

por Aurora da Fonseca Ferreira
A ler | 29 Novembro 2010 | angola, escravatura