Máscaras europeias

Pico do Areeiro #1 - Madeira | 2008 | Cristina Ataíde (cortesia da artista)Pico do Areeiro #1 - Madeira | 2008 | Cristina Ataíde (cortesia da artista)

Na Europa contemporânea, após vários decénios do fim dos colonialismos, os episódios de racismo são recorrentes nos múltiplos espaços sociais de um continente que ainda tem dificuldades em assumir o seu passado imperial. As notícias nos jornais sobre este assunto não são poucas. A crescente presença dos partidos de extrema direita no panorama europeu (como demonstram, aliás, os resultados das últimas eleições europeias) favorece os discursos e comportamentos de exclusão e discriminação por parte de alguns cidadãos em relação aos seus concidadãos. Comentarei brevemente dois destes episódios relacionados com a questão racial, localizados em âmbitos da sociedade muito distintos e cujos contextos são muito diferentes. No entanto, na minha opinião, estes dois casos partilham uma mesma interrogação sobre a noção da cidadania europeia no século XXI.
Há alguns meses, deu-se em Paris um acontecimento que provocou vivas reações no mundo da cultura, e nomeadamente das artes cénicas, em França. No âmbito do Festival Les Dionysies, dedicado à tragédia grega, estava programada a peça As Suplicantes de Ésquilo, sob a direção do encenador e dramaturgo Philippe Brunet, reconhecido especialista na matéria e professor universitário. Ora, no dia 25 de março, a première da peça, que teria lugar no auditório Richelieu da Universidade da Sorbonne, foi boicotada por militantes antirracismo pertencentes a várias organizações francesas. Segundo os manifestantes, as personagens das Danaides (filhas do rei egípcio Dánao) na peça iriam ser representadas com máscaras negras, o que constituiria um caso de “blackface1. A representação teatral só pode ter lugar no final do mês de maio, após uma veemente polémica. Na tradição do teatro grego, as Danaides são umas mulheres de origem grega “com a pele escurecida pelo sol do Nilo”, que chegam a Argos (Grécia) em busca de refúgio, perseguidas pelos seus primos, os filhos do rei Egipto.
Louis-Georges Tin, presidente do CRAN (Conseil Représentatif des Associations Noires, associação que participou na acção da Sorbonne), defendeu o boicote argumentando que a utilização das máscaras negras para representar as Danaides se enquadrava num caso de “blackface inconsciente”, segundo disse ao jornal Le Monde, e tendo em conta a história das representações dos negros na arte ocidental2. Este argumento leva a perguntar-nos se qualquer representação de uma pessoa feita por outra que não possua a mesma origem étnica (neste caso, negra), pode constituir um caso de discriminação racial. A polémica não é nova; pense-se, entre outras, na controvérsia sobre se a personagem de Othelo pode ser incarnada por um actor branco.
Numa coluna de opinião publicada no Le Monde na sequência da anulação de As Suplicantes na Sorbonne, Anne-Sophie Noel, professora de literatura grega, explica com argumentos convincentes que, na tradição do teatro clássico, nem toda representação do “Outro” através da caracterização de máscaras que simbolizam a diferença deveria ser vista como um caso de blackface, sob pena de cair no anacronismo. Aliás, Noel afirma que, em As Suplicantes, Ésquilo “incorpora na civilização grega os aportes do Egito e do Oriente, sem que aquilo implique apagar as diferenças culturais”. E acrescenta que “a peça tem sido objecto de um interesse renovado nos últimos anos, já que transmite com força e claridade a ideia do dever de acolher os estrangeiros”.
Para além da questão do confronto entre a tradição cultural ocidental e a realidade histórica da opressão dos negros, o que me interessa aqui são as implicações deste tipo de actos por parte das associações antirracistas para a construção de uma Europa pós-colonial capaz de reconhecer o seu passado de exploração e repressão dos povos colonizados. Ao meu ver, uma coisa é disfarçar-se ou maquilhar-se de negro (com a intenção, consciente ou inconsciente, de ridiculizar ou divertir), e outra distinta é representar, no contexto das máscaras, as diferenças culturais próprias da tradição do teatro grego. Philippe Brunet, que já encenou peças em África com actores africanos,ressaltou: “Fiz sempre questão de mostrar, na herança grega, a importância de África. […] Não podem separar-nos de África. Somos profundamente africanos. É o que Heródoto conta”.
O segundo caso que envolve a questão racial teve lugar noutros palcos, longe do auditório Richelieu: aconteceu nos estádios de futebol, onde o racismo é recorrente. A 2 de abril, o jovem jogador italiano Moise Kean, nascido na região do Piemonte de pais originários da Costa do Marfim, foi vítima de discriminação racial durante um jogo do campeonato italiano. Aos 85 minutos, a nova estrela do calcio italiano marcou o golo que confirmou a vitória da Juventus contra a modesta equipa do Cagliari, na Sardenha. Após ter sofrido insultos racistas durante toda a partida, Kean foi festejar o seu golo diante dos adeptos locais, ficando imóvel como uma estátua durante alguns segundos, o seu rosto negro estático como uma máscara, com os braços estendidos e o olhar desafiante, até que os outros jogadores (incluídos os da sua própria equipa) o afastaram.
O mais preocupante desta situação, para além do comportamento abjecto das bancadas, foi a reação de todos aqueles que se encontravam à volta do jovem jogador: o treinador da Juventus, Allegri, aconselhou-o a “respeitar o adversário”; o capitão da equipa, Bonucci, afirmou inicialmente que a culpabilidade era partilhada entre os adeptos que lançaram gritos de “macaco” e o jovem avançado por ter reagido às provocações (embora Bonucci tenha, posteriormente, retificado as suas afirmações); a justiça desportiva italiana concluiu, no mês de maio, que o comportamento dos adeptos do Cagliari não merecia ser sancionado, já que os insultos racistas só teriam surgido como consequência do festejo do jovem italiano.
Em contraste com estas reações, Lilian Thuram, ex-jogador da equipa nacional francesa e reconhecido ativista antirracista com a sua fundação Éducation Contre le Racisme, foi extremamente crítico perante esta situação de indiferença e de falta de solidariedade do mundo europeu da bola. Numa longa entrevista, Thuram (que, aliás, estará presente em Portugal a convite do projecto MEMOIRS no próximo mês de Novembro) afirmou, entre outras coisas: “O quê é que Kean fez para merecer esses gritos de macaco? Para merecer tanto desprezo? […] A reação de Bonucci é tão violenta quanto os gritos de macaco. […] Esses gritos de macaco são um desprezo para o conjunto das pessoas negras, incluindo todas as crianças da cor de Kean”.
Por que é que a Europa tem (ainda) tanta dificuldade em mostrar uma atitude coerente perante os discursos legitimadores dos racismos e da xenofobia? Quais são essas máscaras que lhe impedem de aceitar o seu passado colonial e considerar, de uma vez por todas, as diásporas como parte integrante da riqueza do mapa cultural europeu? O “velho continente” será capaz de conciliar o seu glorioso legado cultural (incluindo o teatro grego, dentro do contexto histórico em que este se insere) com o seu – menos glorioso – passado colonial? Poderá, noutras palavras, ultrapassar a “fractura colonial” (Blanchardet al.) e conceber uma nova “Nave Europa” em que seja possível “descolonizar o descolonizador e a sua imagem e descolonizar o descolonizado e a sua imagem”?3 Moise Kean (cujo pai ainda não tem a nacionalidade italiana e declara votar pela Liga Norte, segundo refere El País), é frequentemente questionado sobre se se sente italiano. “Não me sinto”, terá respondido, “Sou italiano”. São estas as verdadeiras máscaras que ainda devem cair na Europa.
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memoirs.ces.uc.pt  

Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS– Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624), 

Programa Europeu para a Investigação e Inovação.

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  • 1. O Oxford English Dictionary define o termo blackface como o disfarce (maquilhagem) usado por um actor não-negro para representar um papel de negro.
  • 2. O tema da representação dos negros nas artes tem sido abordado em várias ocasiões neste espaço, tanto por membros da equipa do projecto MEMOIRS como por colaboradores externos. Ver, nomeadamente, as newsletters MEMOIRS nº 22, 25, 30, 47, 48 e 52. Os textos estão acessíveis aqui.
  • 3. Margarida Calafate Ribeiro, “A Casa da Nave Europa – miragens ou projeções pós-coloniais?”, in: António Sousa Ribeiro; Margarida Calafate Ribeiro (org.), Geometrias da memória: configurações pós-coloniais, Porto: Afrontamento, 2016, p. 25. Disponível aqui.

por Felipe Cammaert
A ler | 22 Junho 2019 | colonialismo, Europa, Memoirs, Passado