Literatura e a contínua reinvenção da identidade nacional: "Rio Seco" de Manuel Rui

Na minha comunicação parto do princípio de que a literatura está impregnada de ideologia e que a literatura, em particular dos países emergentes, foi e continua a ser o lugar de articulação da imagem da identidade nacional, literária, mas não só. Vários autores, insistem no poder de influência dos intelectuais sobre a construção/renovação e mesmo invenção da identidade nacional. Anthony Smith, declara que a literatura é o lugar privilegiado da criação e interpretação dos símbolos, memórias e mitos que fazem parte da identidade nacional (Smith, 2008, 19).

Assim, na minha análise de Rioseco, vou considerar o romance como um exemplo da articulação do discurso ideológico da construção da identidade nacional angolana actual. Este terá como eixos principais da sua construção a paródia crítica, a descrição de elementos da cultura nacional plural, o discurso da  personagem Noíto e a alegoria espacial construída em torno dos elementos rio e mar.

Pressupostos teóricos: Literatura e ideologia

Aceitando que a linguagem está impregnada de ideologia, destaquemos o conceito de ideologia como a construção (consciente e inconsciente) de uma visão de mundo que só na prática social e textual, num acto de vida e de linguagem, se revela: o texto em contexto dá-se como constructo ideológico, em que os juízos, as avaliações, os pontos de vista, os ideais, os sonhos, a negatividade, a modalização, o lugar da enunciação, etc., perfazem um sentido que denuncia a posição social, histórica, etc., de quem se enuncia. Pires Lanranjeira

A afirmação de Pires Laranjeira parte da ideia de que cada cultura tem um modo específico de classificar e ler o mundo, de atribuir um determinado significado ao real empírico e que esse sentido do mundo só pode ser criado através da apropriação que dele fazemos pela linguagem. Esta ideia foi desenvolvida, sobretudo a partir de Lévi-Strauss e diversas correntes e disciplinas que a retomaram, acrescentaram novos dados à questão. De todas as correntes e perspectivas a que mais fez avançar os estudos sobre a impregnação da ideologia na linguagem foi a do estruturalismo, que colocou o processo de significação como o centro da discussão, concluindo que a significação é uma prática social, ou seja, que a um enunciado podem corresponder mais que um significado segundo a sua leitura cultural. Aceitar tal facto equivale a dizer que ela se rege por regras que relevam do social e não do individual, que a ideologia é uma espécie de gramática social que o indivíduo adquire ao fazer parte de dada sociedade e que transparece no seu discurso. O locutor é responsável pelos seus actos de fala (nível individual), mas ao mesmo tempo o sistema de significação no qual eles se inserem (escolha dos elementos, sua associação e regras de combinação, conjuntos de classificação) é social pelo que “les locuteurs sont autant ‘parlées’ par leur langage qu’ils le parlent” (Hall, 2008, 149). Ainda que este processo seja em parte inconsciente (Lévi-Strauss afirmava “les locuteurs produisent le sens, mais seulement sur la base de conditions qui ne sont pas l’œuvre du locuteur, et qui passent à travers lui dans le langage, inconsciemment”, Hall, 2008, 149), a ideologia pode resultar também da vontade consciente do seu autor (ainda que seja fruto das condições próprias da história – do tempo, do local, da história individual do indivíduo – e assim, indirectamente, resultado da acção da gramática de significação social da sociedade em que se insere). A afirmação de Laranjeira vai nesse sentido, ao considerar a possibilidade da construção consciente de uma visão do mundo.

Em teoria literária é aceite, à excepção das correntes estritamente imanentes, que o autor estabelece uma relação dialógica com a sociedade e com o momento histórico (tanto nacional como internacional, social e ideológico) em que se insere, reagindo ao mesmo através de estratégias técnico-literárias1.

Luís Kandjimbo, escritor e estudioso da literatura e cultura angolanas, permite-me avançar na ideia da relação dialógica entre a sociedade e a literatura como lugar de articulação da ideologia e entre a literatura e a construção de uma dada identidade nacional literária ao tratar o problema da individualidade do escritor em relação às identidades colectiva e nacional. Para Kandjimbo o escritor é individualmente “o corolário das relações sociais” (Kandjimbo, 1985, 503). O autor considera que essa individualidade é concreta (correspondendo a determinada realidade social), dinâmica (“porque deverá obedecer às leis mais gerais do desenvolvimento social” Kandjimbo, 1985, 503), actual (por se inserir em cada etapa da evolução da sociedade). Por outro lado, a consciência reflexiva sobre o processo é dada como condição necessária para essa individualização parcial do colectivo (Kandjimbo, 1985, 503). Kandjimbo vê assim o processo da construção da identidade nacional, através da identidade individual dos diversos escritores, como um processo dialéctico entre o individual e o nacional, que é na prática um processo dialéctico entre o singular e o geral, em que o sujeito social da cultura (segundo a teoria de Moisei Samoilovich Kagan) é formado através de um processo de socialização e endoculturação, quer dizer, através da “(…) conversão da cultura da sociedade – realizada nos tipos histórico, étnico e a série dos vinculados a grupos sociais – na cultura da pessoa” (Kandjimbo, 1985, 506).

Literatura e construção da identidade nacional

(…) “‘literature’ and ‘nation’ could hardly fail to belong toghther: from the very start they were made for each other. Once the concept of literature was taken up by Africain intelectuals, the Africain debate about literary nationalism was inevitable.” Appiah

Nos países africanos de língua portuguesa os processos de ligação entre literatura e identidade nacional foram os mesmos que os da Negritude ao nível dos seus agentes, dos meios de difusão e do projecto comum traduzido nas obras. Os escritores eram frequentemente líderes políticos ou (mais tarde) guerrilheiros. As revistas literárias eram o veículo de difusão das ideias independentistas e os textos literários tinham, a par da sua qualidade e função estética, uma função apelativa e performativa inegáveis. Assim, a literatura foi primeiro o lugar da articulação de um discurso que contrariava o discurso colonial – prosa exótica e que no dizer de Laranjeira “ratificou o espírito tarzanístico” (Laranjeira, 1987, 21) –, com outras visões da terra e da sua gente, com outro discurso e uma língua portuguesa outra; depois foi o lugar do sonho da formulação da utopia2, subsidiária do projecto político da independência, cantando países edénicos africanos unos e sem diferenças étnicas ou culturais, construindo pouco a pouco o lugar político através da nação literária; durante a luta de libertação cantou os heróis e a resistência, construindo os mitos culturais da nação; e na situação pós-colonial, após o desfazer das utopias contra a realidade disfórica do presente, a literatura procura apreender, ainda e sempre, uma identidade nacional harmónica, mas múltipla e complexa. Ou seja, a literatura tem sido o lugar de articulação da ideologia, ou seja de proposta de um outro real, o “redoublement du réel” na expressão de Ricouer.

Análise de Rio Seco 1. Apresentação do romance

O romance tem como tema principal a integração de refugiados da guerra civil numa comunidade fechada, pré-existente: a população de uma ilha, separada do continente por um braço de mar. A intriga parte da integração exemplar de Noíto e Zacaria, um casal de velhos, originários cada um de regiões diferentes de Angola. Ambos se preocupam em conhecer e respeitar os hábitos locais e, pela força do seu trabalho, ele carpinteiro, ela cultivadora, constroem um novo lar, pelo respeito com que tratam a população e são tratados, constroem uma nova rede social. Mas outros refugiados chegam e a anomia instala-se: a corrupção que traz tão bons resultados aos ricos cria nos deserdados da sorte, que se sentem injustiçados pelo sistema, o desejo de fazer o mesmo (no caso, apoderar-se de casas que tinham sido dos colonos e que de momento se encontravam na mão do Estado) e o serviço à comunidade (ensino primário gratuito), que substitui o trabalho remunerado e mal feito de um funcionário, cria a inveja, a que se vem juntar o desejo sexual não correspondido. Estas tensões resultarão na prisão e morte por maus tratos do pescador inocente que a improvisada professora tinha escolhido como companheiro e na morte de Zacaria, o carpinteiro, por não ter favorecido outro suspirante da mesma.

A representação do referente geográfico-histórico-social da intriga de Rioseco corresponde à configuração do mundo real da sociedade angolana, representado metonimicamente pela ilha. A construção do espaço social da diegese do romance Rioseco apresenta heterogeneidade de grupos étnicos e de grupos sócio-económicos. Cada um destes grupos sociais (e não étnicos) vai ser o suporte de um discurso, que dialogicamente (no sentido Bakthiniano) se vai cruzar no texto, trazendo para o romance as discussões que atravessavam a sociedade angolana. O discurso popular será o lugar textual em que se exprime a memória colectiva regional (as tradições de diferentes lugares, usos e costumes alimentares, de trabalho, etc.), a cultura ancestral (as crenças, a orientação para a acção) e a cultura da crise (orientações para se situarem e agirem nesta nova sociedade e situação). O Estado falará pela boca dos seus representantes oficiais: em particular o Cabo do Mar, o delegado do Ministério da Cultura, e o representante do Ministério da Agricultura. O discurso da corrupção tem como principal representante um antigo guerrilheiro transformado num vadio que aterroriza da população, mas todos os personagens dão o seu contributo, quer explicando como funciona, quer propondo activamente acções corruptas. O discurso de crítica à situação do país é feito por Noíto, pelos novos ricos e pelos intelectuais. O discurso de construção da nação angolana una e justa, que justifique os sacrifícios feitos na guerra de libertação, surge pela voz de Noíto.

Construção da identidade nacional angolana

Paródia crítica

A mise en intrigue criada configura não só os aspectos positivos da nação angolana (entreajuda dos populares, carácter empreendedor da sua população e beleza e riqueza da terra), mas sobretudo os aspectos disfóricos da sociedade presente, que se desviam da utopia sonhada durante o período da luta de libertação, o que é ainda um modo de reforçar os seus ideais. O modo casticista em que Manuel Rui se insere engloba a linguagem típica do povo e a crítica social, mas essa crítica acaba por reforçar a referencialidade ideo-política, pois não contesta a nação, mas apenas os abusos de poder ou a disfuncionalidade da sociedade. As personagens da classe média ou superior são todas tratadas com uma ironia mordaz e divertida, sobretudo através do uso que as personagens fazem da língua, que se torna o mais importante meio de caracterização das mesmas. As personagens populares, o homem / a mulher comuns angolanos, são tratados de modo a provocarem a empatia do leitor, desta feita através da acção, quer pelas dificuldades por que passam e que ultrapassam com coragem e determinação, quer pela atitude digna de amor ao trabalho e à partilha que contraria o oportunismo generalizado, quer pelas dúvidas que os assaltam, quer ainda pela autoridade natural que emana da mulher, Noíto. Esta diferença clara de tratamento das personagens orienta inevitavelmente a leitura da paródia crítica: os fenómenos perversos da mobilidade social, vão contra os ideais de igualdade e fraternidade que enformaram a criação da nação. Este é o primeiro meio ao dispor da construção da imagem da identidade nacional, sob a influência de determinada ideologia.

Cultura nacional angolana

A cultura popular está presente pela voz de todos os populares habitantes da ilha (e mesmo analiticamente e de modo pseudo intelectual pelos veraneantes que a visitam). Trata-se de uma cultura variada comportando diferentes culturas regionais. A justaposição cultural não é impeditiva de um diálogo harmónico (a exemplo do casal Noíto e Zacaria, ela umbundu e ele tshokwe), antes é vista numa perspectiva pragmática: aprender com o que cada um tem de melhor e adaptá-lo às novas situações. Mas para além das diferenças existem pontos comuns entre todas as culturas regionais angolanas. A honra de cada uma manifesta-se de modo muito próximo: o respeito pelos mais-velhos e destes pelas crianças, o respeito pela natureza, a boa educação e civismo naturais, a crença em espíritos e a crença em que alguns homens ou mulheres detêm poderes superiores sobre a natureza (no caso o fazer chover)3, a crença em divindades próprias ao lugar, como a Kianda, uma sereia, e mesmo alguns usos e costumes.

Dentro do discurso sobre a cultura popular, tem particular importância o discurso sobre a crença religiosa. A maioria dos habitantes da ilha acredita nos elementos da crença africana acima referidos e é católica (vão à missa). Mas o discurso sobre a crença baseia-se particularmente nos diálogos e monólogos interiores de duas personagens: Noíto e Sô Pinto. Ambos têm uma fé miscigenada, respeitando tanto os valores da religião católica como os da crença africana, como neste excerto em que o português associa as promessas feitas à Kianda (sereia) e as promessas que se fazem à Nossa Senhora de Fátima. Manuel Rui demonstra que a crença no sobrenatural, seja africana ou europeia, tem muitos pontos em comum4:

“(…) depois do Prior, sou o primeiro branco que vai entregar uma despesa para a sereia. Como se fosse para a Nossa Senhora de Fátima. Eu não acredito mas só Deus é que sabe.’ E tirou, respeitosamente, a boina.” (Rui, 1997, 312).

Noíto pede várias vezes o auxílio de Deus, teme mentir ou ter pensamentos vingativos, com medo do castigo divino, o seu comportamento corresponde ao de uma crente católica. Mas não se embaraça com escrúpulos ou justificações por incluir na sua fé todos os elementos da crença africana: “Deixem só o meu marido trabalhar nos vossos barcos que o peixe vai vir. Eu é que pedi a Deus e na Kianda fiz promessa que já paguei” (Rui, 1997, 333).

Noíto – traço de união nacional

Mas o recurso principal da construção ideológica da angolanidade baseia-se no discurso da personagem Noíto. Esta funciona como um mito da África ancestral e renova positivamente o mito do guerrilheiro da África moderna. Ela é uma mais-velha, respeitada por toda a comunidade, transmissora da cultura às gerações futuras. Para além disso, juntamente com o seu marido representam o casal tradicional da cultura africana ancestral: ela trata a terra e o gado e ele é, (era, antes da guerra) caçador5. Paralelamente, Noíto é ainda uma mulher de poderes, ou seja uma feiticeira. Manuel Rui, segundo Kandjimbo, inspirou-se numa figura real da sua região, o Huambo, para a criação desta personagem6. Isto no que respeita ao mito da mulher africana, positiva, respeitada. Mas Noíto acompanhou também as lutas de libertação, fez parte do maqui, na qual perdeu os seus bens e o seu primeiro marido. Dos três representantes que a diegese apresenta de guerrilheiros da luta da independência (em sentido lato, pois nunca é referido que Noíto tenha pegado em armas), ela, uma mulher, é a única que ainda respeita os seus ideais, tanto pela acção, como pelas palavras. Noíto integrou em si a ideologia que orientava os movimentos de libertação na sua construção da identidade do país do porvir, que comporta vários pontos: um país pluriétnico, plurilingue, pluricultural, em que o racismo não teria lugar. Assim, Noíto defende Angola una apesar das diferenças étnicas, o respeito pelos costumes de cada grupo étnico, conhecer várias línguas, nomeadamente a portuguesa como meio de comunicação entre todos, integração dos brancos, ex-colonos, na nação angolana e do que de bom a sua cultura trouxe, a par da sabedoria ancestral positiva da cultura angolana.

A personagem Noíto é ainda a personagem exemplar da história e o traço de união de toda uma nação. É ela que faz a ligação entre as diversas classes sociais e diversos grupos da ilha (mesmo os elementos que se auto-excluem), é ela que faz a ligação entre os vários momentos da História recente do país e ainda quem conhece a terra, trazendo para o discurso da narrativa as descrições das paisagens tipicamente africanas, que a ilha não pode apresentar, num desejo de partilha de tudo o que esse grande lugar, que é Angola, dá:

“Eu e o meu marido tivemos muitos porcos para dar até nas pessoas. Muita coisa boa nem tinha dono e a gente apanhava só. Loengos e tortulhos. A carne dos bichos que o meu marido caçava, comíamos, secávamos e da pele fazíamos muita coisa. Um dia vocês vão ver eu ir buscar coisas na minha terra. Só um tortulho que tapa a cabeça do Pinto ou um bambi inteiro” (Rui, 1997, 333).

As paisagens africanas recordadas incluem o capim, as grandes árvores da floresta, os grandes rios que atravessam Angola e que fertilizam as terras, a fauna tipicamente africana (leão, bambi, jacaré), outros sons de instrumentos de outras tradições. É aliás a única personagem a invocar o país e o ser angolana, não receando erguer a voz contra os novos donos da nação:

“Abre bem as tuas orelhas. Eu andei com esses muatas que vieram do maqui. Quando quiseres vai-lhes perguntar. Vim para aqui porque não quero esmola de ninguém. E, na outra guerra que te trouxe estas casas todas, perdi eu as minhas, sem saber que estávamos a lutar para um Cabo do Mar do estado que ele mesmo é que recuperou as bicuatas dentro das casas e que não malcriada com os ricos de agoramente dos barcos com motor. Mas porque é que eu não posso ficar nesta casa? Se eu sou de Angola. Também não sei a tua terra e quem sabe se já passei por lá, comi, dancei, bebi e um filho dessa terra, fugido para não ser circuncisado e vir ajudar no colono e depois agora no tal estado, vem querer receber na casa?”7 (Rui, 1997, 58).

Noíto, a velha desdentada, como é tratada pelos “civilizados” da cidade, pode ser considerada uma verdadeira cosmopolita, segundo a definição de Yi-Fu Tuan (Tuan, 1996, 943): aquele que pode fazer casa em qualquer parte do mundo e que por motivos filosóficos, religiosos ou económicos, encara o outro com tolerância. No caso de Noíto, são os princípios filosóficos da Nação que lhe foram incutidos durante a luta armada para a libertação e o amplo conhecimento que adquiriu de diferentes lugares, etnias e línguas que fazem com que encare novas realidades com tolerância e que se sinta também ligada a esse lugar novo da ilha, incorporando-o no lugar mais vasto que é a Nação, uno apesar das diferenças8. Sendo a aprendizagem do que é novo o meio de atingir esse estado cosmopolita de aceitação das diferenças, como os novos costumes da ilha, as línguas dos lugares por onde passou ou o português. Por outro lado, o sentido desse lugar vasto que é a nação foi adquirido através de experiências íntimas positivas, tais como a solidariedade entre os guerrilheiros e o projecto comum de independência e dignidade para todos. Assim, o lugar tornou-se íntimo, mítico e mesmo sagrado através dos sacrifícios de vidas que foi necessário fazer para se chegar à vitória contra o exército colonial. Segundo Tuan (2006, 178), um dos modos de transformar a ideia política de nação num lugar concreto, e por isso passível de gerar sentimentos positivos, é tornar o seu espaço sagrado9. Noíto recorda os tempos passados no mato, durante a luta armada contra o poder colonial, com prazer: “Les gens regardent en arrière pour différentes raisons, mais il en est une qui est partagée par tous: le besoin d’acquérir un sens de soi et de son identité” (Tuan 2006 : 187). E o ser angolana é sem dúvida um dos traços que Noíto integrou na sua identidade. A apropriação do espaço independentemente da sua escala, a sua transformação em lugar, dá-se sempre pela via da aprendizagem e das experiências íntimas solidárias, de que o discurso da personagem reporta vários exemplos.

Alegoria da Angola reunida

O quarto recurso de construção da imagem literárias de uma determinada Angola baseia-se numa alegoria espacial. Rioseco é um romance de estética marcadamente realista, cuja acção se pode ler quase como uma citação paródica da realidade. No entanto, a descrição poética do espaço e da relação das personagens com o mesmo afasta-se deste registo e tem uma importância decisiva dentro do texto. Ao longo de todo o romance as personagens interrogam-se sobre o poder / importância dos rios e do mar e esses elementos vão estar na base de uma peripécia de registo fantástico10, que se deve ler como uma alegoria. As personagens principais, Noíto e Zacaria vieram do interior e nunca tinham visto o mar. Assim, a vida na ilha e os seus hábitos ligados à pesca, à navegação, à apanha do marisco, etc. são para eles absolutamente novos. Interrogam-se sobre essa natureza diferente, tentando dar um sentido àquilo que vêem, de modo a poderem integrá-lo no seu conhecimento e na cosmogonia em que se inserem:

“Une vue sur le monde est une tentative plus ou moins systématique d’une personne qui souhaite donner du sens à l’environnement. Pour être vivables, la nature et la société doivent montrer un ordre et témoigner d’une relation harmonieuse. (…) Elles [les cosmogonies] sont des tentatives de répondre à la question de la place de l’homme dans la nature. Des activités pratiques paraissent arbitraires et peuvent offenser les dieux ou les esprits de la nature, à moins qu’elles ne soient perçues comme ayant un rôle et une place dans un système cohérent du monde” (Tuan, 1996, 92).

Noíto e Zacaria interessam-se por esse mar imenso que os separa da ilha, querem saber que águas o compõem, como funciona, que força tem. Zacaria, o eterno nómada identifica-se com o rio que prefere e defende a sua força em detrimento da do mar: a água do rio entra no mar, a do mar não entra no rio, por maior que ele seja; o fio de água fraco que engrossa ao percorrer as terras angolanas alimenta o mar. O maior problema de subsistência da ilha é não ter uma fonte de água doce, mas Zacaria insiste na possibilidade de existir um rio subterrâneo, que percorre aquela ilha. No final, Zacaria morre e nesse momento, o rio subterrâneo que ele havia predito, jorra na ilha, contra toda a verosimilhança, partindo da ilha para o continente. Nessa alegoria, a ilha paradisíaca será metonimicamente o símbolo do país ideal, em que reina a harmonia interétnica e a entre-ajuda; no mar que separa a ilha do continente e a que vêm desaguar os rios, poderemos ver o símbolo da separação existente entre o país ideal e o país real em que reina a corrupção e a guerra; o rio será o símbolo da força das diversas terras e povos por onde corre e que constituem Angola. Mas o ponto principal desta alegoria é a reunião entre o interior e o litoral, entre, os rios que correm do interior e que representam ainda os povos desprezados na grande cidade, tratados depreciativamente como “os do mato” e o mar que representa os povos do litoral. Trata-se da abolição de linhas de fronteiras sociais e étnicas que atravessam o país.

De início a ilha surge descrita como um paraíso, cuja natureza alimenta o homem e onde reina a harmonia. O pecado original que alterará a situação e levará ao crime será a prepotência do poder, a sede de riqueza e o ciúme. No final a situação de anomia terá sido resolvida e todos os elementos nocivos ao bom funcionamento do grupo terão sido castigados, reinando de novo a concórdia na ilha. A harmonia reencontrada, contrariando o final negativo da história bíblica, será representada alegoricamente pelo jorrar de um rio que fecundará a ilha/país, o que não pode deixar de ser lido como um sinal de esperança.

A esperança está ainda representada na obra por uma personagem: Kwanza, um jovem rapaz. Kwanza é também, como se sabe, o nome do maior rio de Angola, que desagua a cerca de 70Km de Luanda. A coincidência dos nomes do rio e do rapaz é extremamente significativa. De facto, o rapaz é o tradutor cultural da velha Noíto, a quem ela, por sua vez,  transmite o seu saber: da história recente do país e da terra angolana (paisagem, fauna, hidrografia, costumes). Kwanza, o rapaz, é do rio – pelo seu nome e por ser descendente de habitantes da foz do rio – e é do mar, pois aprendeu com seu pai as artes do mar Assim, simboliza os dois princípios e a Angola reunida do futuro. A sua condição de criança / jovem faz dele a esperança do país uno e plural.

Conclusão

Abandonadas que foram as imagens utópicas e paradisíacas de um país do porvir sem mácula, afirmação ideológica da africanidade e do direito à independência, que caracterizaram a literatura do tempo colonial, os autores contemporâneos dos países africanos de língua portuguesa, confrontados com a realidade de guerra e de egoísmos vários, não deixam de lutar por um país ideal, de que a ilha afortunada de Rioseco é um exemplo. Manuel Rui conta as histórias pouco reluzentes do dia a dia da sobrevivência e da subida social, escrevendo a História nacional num discurso literário, mas também recria mitos antigos e modernos – a mais-velha, a mulher do maqui, a “quimbanda de fama” que viveu realmente no Huambo. Ambos os aspectos vão integrar e renovar a imagem da identidade nacional, imbuída da sua da sua individualidade, da qual faz parte a sua visão do mundo: Angola em constante mutação, adaptando-se, o que não significa desvirtuar-se. Como diz uma das personagens do romance:

“Pois, exactamente, eu entendo que as coisas nunca se caracterizam, indefinidamente, no tempo e no espaço. O mais importante é transformarem-se. E esta ilha não foge à regra” (Rui, 1997, 444-445).

A voz de Manuel Rui junta-se às de outros escritores, historiadores, sociólogos que defendem essa mesma Angola, simultaneamente plural e una Por fazerem parte da elite acabam por ter mais espaço no diálogo que se estabelece no espaço público e influenciam indubitavelmente a identidade nacional. Pelo que, as funções poética, apelativa e performativa do romance Rioseco são indissociáveis. Neste caso, como poderia uma análise estritamente literária da obra, chame-se-lhe comparada ou não, dar conta do sentido profundo da mesma?

 

Bibliografia

RUI, Manuel (1997): Rioseco. Lisboa: Edições Cotovia.

APPHIAH, Anthony (1992) : In My Father’s House. New York : Oxford University Press.

HALL, Stuart (2008): Identités et Cultures Politiques des Cultural Studies. Paris : Éditions Amsterdam.

KANDJIMBO, Luís (1985) : “A individualidade do escritor: um elemento do projecto de identidade nacional”, Les Littératures Africaines de Langue Portugaise A la recherche de l’identité individuelle et nationale. Paris : Fondation Calouste Gulbenkian Centre Culturel Portugais.

LARANJEIRA (1995): A Negritude Africana de Língua Portuguesa. Porto: Edições Afrontamento.

REIS, Carlos e LOPES, Ana Cristina (1998): Dicionário de Narratologia. Coimbra: Almedina.

RELPH, Edward (1996): “Place”, Companion Encyclopedia of Geography The Environment und Humankind, in Douglas, Ian, Huggett, Richard e Robinson, Mike (ed.). London e New York: Routledge, 906-922.

TUAN, Yi-Fu (1996) “Home and World, Cosmopolitanism and Ethnicity. Key concepts in contemporary human geography”, in Douglas, Ian, Huggett, Richard e Robinson, Mike (ed.). London e New York: Routledge, 939-951.

  • 1. “Inserido num contexto estético-periodológico e histórico-cultural, o autor dificilmente pode eximir-se às suas solicitações e injunções; a criação literária que elabora responde, de forma mais ou menos explícita, às dominantes desse contexto, transparecendo nela, de forma mediata, as suas coordenadas históricas, sociais e ideológicas. É em obediência a tais solicitações, mas operando em princípio pela via de transposições e de procedimentos de codificação especificamente técnico-literários que o autor adopta estratégias narrativas consequentes: opções de género, instituição de narradores e situações narrativas adequadas, configuração compositiva, economia actancial, etc.” (Reis e Lopes, 1998, 40).
  • 2. Laranjeira considera-a uma meia-utopia, pois ao mesmo tempo que renega o presente, inscreve o futuro como uma possibilidade, que aliás se concretizou. Laranjeira justifica a sua designação com o facto de a literatura já ser um primeiro passo na prossecução do objectivo almejado, o que não concorda com a teoria de Manheim, também adoptada por Ricoeur. Sendo a diferença fundamental enunciada por Laranjeira entre utopia e ideologia, o facto de esta prometer “a edificação da felicidade no espaço e no tempo desfrutáveis de uma vida a viver” (Laranjeira, 1995, b), 217) e aquela ser mais vaga quanto ao limite temporal dentro do qual será cumprida.
  • 3. Na diegese criada, os habitantes da ilha (até o português) começam a acreditar que Noíto, a quem passam a chamar Kambuta, pode “amarrar” a chuva ou “desamarrá-la”; mas também Noíto conta que na sua terra havia um feiticeiro que fazia chover.
  • 4. Tal como na novela Memória de Mar.
  • 5. Paralelamente à sua profissão de carpinteiro, traço de cultura de assimilado.
  • 6. Kandjimbo, http://www.nexus.ao/kandjimbo/manuel_rui.thm, consultada a 18,11,09.
  • 7. Sublinhados meus.
  • 8. Baseio-me na teoria de Yi-Fu Tuan e de Edward Relph sobre espaço vivencial e sobre a diferença que estabelecem entre espaço e lugar, sendo o lugar um espaço carregado de sentidos, vivido, existindo uma correlação entre o lugar e as pessoas que o habitam. Um espaço passaria a ser um lugar através das experiências íntimas que cada um lá viveu, de forma directa ou mediata.
  • 9. A análise de Tuan refere-se ao contexto ocidental, através da construção de monumentos aos mortos que lutaram pela pátria, mas mesmo sem esses monumentos é possível ver essa sacralização e, no caso da personagem Noíto, a personagem considera o espaço da natureza, repleto de espíritos, como sagrado.
  • 10. Utilizo o termo de modo lato, como manifestação meta-empírica não explicável dentro da verosimilhança do mundo racional. Pepetela introduziu a expressão de realismo animista por analogia com o realismo mágico da literatura da América Latina. Manuel Rui, numa entrevista, refere as duas expressões sem se decidir por nenhuma.

por Nazaré Torrão
A ler | 24 Junho 2011 | literatura angolana, Manuel Rui, Rioseco