K3, crónica da Guiné

Deixemo-nos de rodeios: K3, de Nuno Dempster, é um dos melhores livros de poesia publicados em Portugal nos últimos anos e a mais espantosa aproximação ao horror da Guerra Colonial desde Catalabanza, Quilolo e Volta, de Fernando Assis Pacheco (1976). Poema longo e de fôlego épico, K3 narra a experiência militar do autor na Guiné e procura arrancar às trevas do esquecimento os «anti-heróis» que combateram a seu lado, esses representantes involuntários das «gerações vencidas a quem coube / fechar impérios», homens usados como carne para canhão por um regime caduco. «E chega-me esta gente como um peso, / não me sai da lembrança, / não me sai do poema, / acompanhou-me oculta até hoje», assume Dempster, para quem o resgate da memória serve aqui de expiação, exorcismo e catarse.No princípio é a Gare Marítima de Alcântara, o lugar simbólico das despedidas, com lenços brancos e choro aflito de mães e namoradas, intuindo que muitos daqueles jovens não regressariam vivos. O «alto navio negro», a abarrotar de soldadesca assustada, surge como «nefasta» réplica das caravelas dos Descobrimentos e quem lá vai dentro sente-se devedor de «juros / acumulados há seiscentos anos». A «gesta lusitana» repete-se, mas «escrita desta vez / ao contrário». É por isso no avesso da grandiloquência que o poema prossegue mar adentro, sentindo «o estremecer das máquinas / na medula dos ossos» e a respiração de três mil rapazes prestes a deixar a juventude para trás, sonhando à noite com mulheres que se assemelham a fogos de Santelmo, emanações do desejo que os distraem do pavor da morte. Segue-se a descoberta da realidade africana, a «selva dos miasmas», as paisagens envoltas em sol vermelho, o calor que «formava uma abóbada / com o céu sempre baixo», o contacto com os negros e os seus «corpos de hulha / pronta a incendiar-se». Dempster leva para o mato livros de Pavese e discos de Stan Getz, a pensar ouvi-los num gira-discos a pilhas, mas quando a lancha cinzenta, «cor de guerra», o transporta para o palco dos combates, é já «sem hipótese alguma de lirismo». Assim que as balas começam a zunir «como abelhas mortais» e os aviões T-6 descarregam napalm sobre o inimigo, inscreve-se no cérebro em pânico «a gritaria, / o medo e o estigma». Surge então, como um círculo do inferno, o labirinto do K3, essa rede de subterrâneos «que nenhuma epopeia há-de lembrar», porque «não há poemas que celebrem / soldados sob fogo nos túneis escavados, / casernas enterradas, criptas cheias / de vencidos sem culpa e sem vontade».Os dias no K3, riscados a esferográfica, são um «tumor», uma «síndrome em mim» que «me levou a luz / e trouxe a indiferença». O resto da guerra, em Colibuia, em Quebo, é o culminar de uma alucinação em que nunca deixaram de assomar, ao longe, os cavaleiros do Apocalipse. E será que se volta deste passado? «Voltar ou não voltar, // morrer ou não morrer, tanto fazia», conclui Dempster, depois de confessar, melancólico: «sobrevivi / nas coisas mínimas / que a falta de futuro me deixava».

Avaliação: 8,5/10
[Texto publicado no n.º 101 da revista Ler e no blog Bibliotecário de Babel]

 

K3 de Nuno Dempster, &EtcN.º de páginas: 63, 2011

por José Mário Silva
A ler | 29 Junho 2011 | guerro colonial, Guiné Bissau, poesia