Guimarães Rosa lido por africanos: impactos da ficção rosiana nas literaturas de Angola e Moçambique

Abordo os impactos da obra de João Guimarães Rosa nas literaturas de Angola e Moçambique, centrando minha atenção em depoimentos e obras dos angolanos Luandino Vieira e Ruy Duarte de Carvalho, e do moçambicano Mia Couto.

De início, importa mencionar a imensa relevância da literatura brasileira na formação da literatura destes países, Angola e Moçambique, que certamente não se restringe à obra rosiana. Interessantemente, porém, a obra de Rosa ocupa um lugar bastante especial na trajetória dos escritores mencionados, lugar que procurarei apontar.

Começo com Luandino Vieira que, em entrevista a Michel Laban, fala das leituras que fez em sua passagem da infância para a adolescência, havendo, então, especial lugar para obras realistas e neo-realistas, marcadas pelo teor de crítica social, indicadas e fornecidas por outro importante escritor, mais velho que ele, Antonio Jacinto (1924-1991):

Antonio Jacinto pôs-nos a sua biblioteca à disposição e nós lemos muito. (…) Lembro-me que li o Gorki em caderninhos, publicado em fascículos. Tinha sobretudo os naturalistas, tinha os russos, os populistas, os naturalistas russos, quase todos, tinha também os franceses, Zola, Balzac, dos portugueses, Camilo Castelo Branco estava tudo, Eça de Queiroz… (…) Nós lemos Steinbeck e depois lemos Jorge Amado e começamos a ler toda a literatura brasileira dos anos trinta, do Nordeste: o Jorge Amado, a Raquel de Queirós, Lins do Rego (…). Entre os anos de 45 e 48.  (LABAN, 1980; p. 15)

Luandino Vieira nasceu em 1935, portanto a formação literária a que então se refere se dava entre seus 10 e 13 anos. Como parcela importante de sua geração envolvida com a produção cultural em Angola durante o período colonial, Luandino Vieira viria a integrar o MPLA (o Movimento Popular de Libertação de Angola é fruto de movimentos político-culturais anteriores, como o do grupo de 1948 em torno do lema “Vamos descobrir Angola”, no qual estavam envolvidos os poetas Antonio Jacinto, Viriato da Cruz e Agostinho Neto, que seriam os dirigentes do movimento de libertação, tornando-se, Agostinho Neto, após o advento da independência, o primeiro presidente angolano). Luandino foi preso, como também Antonio Jacinto e muitos outros escritores, em 1959. Foi solto em 1960 e novamente preso em 1961 (ano em que estourou a guerra de independência). Ficaria em cárcere até 1972, e depois passaria 2 anos em liberdade vigiada, em Lisboa. Foi no cárcere que Luandino leu Guimarães Rosa. Foi também no cárcere que redigiu grande parte de sua obra. Podemos inferir, pelo elenco de escritores acima referido e pelo fato de ter sido preso pela PIDE, a tônica de sua produção, sua dimensão crítica, de literatura militante, tornando-se um instrumento de denúncia da brutalidade do colonialismo português instalado em Angola. Seus primeiros livros produzem-se nessa chave, como o romance A vida verdadeira de Domingos Xavier, que conta a história de um trabalhador preso pela PIDE e torturado até a morte.

Uma mudança notável dá-se em Luuanda. Enquanto escrevia esse livro, ou logo após escrevê-lo, Luandino teve seu primeiro contato com a obra de Rosa. Segundo o escritor, na mesma entrevista a Laban:

Eu estava a passar para um caderno escolar a versão final da ‘Estória do papagaio’ [um dos três longos contos de Luuanda]. E, na visita desse dia, a família trouxe-me este livro, que não era uma oferta porque o dono do livro dizia: ‘Eu só tenho este exemplar, mas é pra você ler’. Era o Sagarana de João Guimarães Rosa, que eu li uns meses mais tarde. E então aquilo foi para mim uma revelação. Eu já sentia que era necessário aproveitar literariamente o instrumento falado dos personagens, que eram aqueles que eu conhecia, que reflectiam – no meu ponto de vista – os verdadeiros personagens a pôr na literatura angolana. Eu só não tinha encontrado ainda era o caminho. Eu sabia qual não era o caminho (…), que o registro naturalista de uma linguagem era um processo, mas que não valia a pena esse processo porque, com certeza que um gravador fazia melhor que eu. Eu só não tinha percebido ainda, e foi isso que João Guimarães Rosa me ensinou, é que um escritor tem a liberdade de criar uma linguagem que não seja a que seus personagens utilizam: um homólogo dessas personagens, dessa linguagem deles. Quero dizer: o que eu tinha que aprender do povo eram os mesmos processos com que ele constrói a sua linguagem, e que – se eu fosse capaz, creio que não fui capaz –, mas se fosse capaz de, utilizando os mesmos processos conscientes ou inconscientes de que o povo se serve para utilizar a língua portuguesa, quando as suas estruturas lingüísticas são, por exemplo, quimbundas, que o resultado literário seria perceptível porque não me interessavam só as deformações fonéticas, interessava-me a estrutura da própria frase, a estrutura do próprio discurso, a lógica interna desse discurso. (LABAN, 1980; p. 27-28)

O impacto da leitura de Sagarana na produção de Luandino é por ele próprio apresentado aqui como decisivo: trata-se de “encontrar um caminho”, o que não me parece pouco. A percepção é de que seria possível criar uma linguagem literária a partir da apreensão dos processos de que o povo se vale para criar sua língua. O trabalho com a língua não se restringiria a uma tentativa de retratar o falar popular, numa chave naturalista, mas seria uma recriação. Trata-se de um aprendizado que marcaria sua obra: não era preciso se restringir ao português do português (o colonizador, afinal), tampouco restringir o português popular ao nível do documental (que, em termos de realização literária, costuma resultar no duplo registro: o português padrão, tido como correto, na fala do narrador, e, na fala de certas personagens, o português “regional”, para não dizer incorreto, produzindo-se uma hierarquia, a afirmação de uma norma e um desvio). É a possibilidade de inventar – aproveitando as possibilidades internas da língua e também aproveitando o confronto de variantes linguísticas ou mesmo de línguas (como no caso do escritor angolano, as línguas africanas, especialmente o kimbundo, e o português) –, é a possibilidade de inventar uma linguagem própria para expressar a sua realidade que Luandino diz ter aprendido com Rosa.

Podemos notar, já em A vida verdadeira… e Luuanda, mas de maneira muito mais radical em João Vêncio: os seus amores, que a linguagem acolhe e prolifera as transformações que o povo angolano viera produzindo no português (interessantemente, muitas características do português angolano são também do nosso português – me, te, lhe antes do verbo, inclusive em início de oração; ir na casa; palavras como xingar, capim, bunda, caçula, sunga… que vêm do quimbundo –, o que remete à importância das línguas bantas introduzidas no Brasil com a vinda dos africanos trazidos ao longo dos séculos de escravidão e às relações entre Brasil e Angola nesse período). Além da invenção lexical e sintática, nota-se a presença de gêneros discursivos próprios das tradições orais africanas em Luuanda, como o conto tradicional (mussosso ou missosso) e o provérbio (próprios também de nossas tradições populares, especialmente rurais).1

A entrada em cena dessas formas da oralidade, da literatura oral ou oratura, recriadas na escrita, tem sido amplamente apontada pelos estudiosos das literaturas africanas como traço decisivo na constituição de literaturas nacionais africanas, na autonomização dessas literaturas com relação às matrizes coloniais (este é o caso, no que se refere à literaturas de Angola e Moçambique, dos estudos de Rita Chaves, Ana Mafalda Leite e Laura Padilha, por exemplo). No caso da literatura angolana, Luandino Vieira ocupa lugar chave nesse processo de constituição de uma literatura nacional, que se contrapõe ideológica e literariamente à literatura colonial (que representava o africano como inferior, e em nenhuma medida o tinha como destinatário). Não é pouco o fato de que a leitura da obra de Rosa tenha contribuído para que se delineasse este caminho literário a Luandino e, assim, à literatura angolana.  

Não foi apenas Sagarana que Luandino leu no cárcere. Grande sertão: veredas também chegou às suas mãos. Vejamos seu depoimento (retirado da mesma entrevista a Laban):

Um amigo mandou-me de Lisboa, em 1969, Grande sertão: veredas e nós lemos na cadeia o Grande sertão: veredas porque o diretor começou a ler e não percebeu nada, e achou que ninguém percebia, e disse: ‘Bom, isto pode entrar’. Recordo-me que isso foi uma experiência muito interessante, que alguns angolanos com muito pouca formação literária leram, não só gostaram como compreenderam a quase totalidade da própria linguagem, ao ponto de alguns repetirem as frases que tinham decorado, como ‘Soletrei ano e meio meante cartilha e palmatória’ quando o narrador descreve a sua educação em criança. Havia alguns camaradas lá que diziam frases inteiras do livro, e depois, mais tarde, fizemos algumas pequenas discussões sobre partes de Grande sertão: veredas, e a compreensão era tão grande, até o nível lingüístico. E isto angolanos com o segundo ciclo dos liceus [o que corresponderia à quinta série]. Depois, portanto li Grande sertão: veredas, e mais se confirmou aquela idéia, aquele ensinamento que me tinha dado quando li Sagarana: a liberdade para a construção do próprio instrumento lingüístico que a realidade esteja a exigir, que seja necessário. E sobretudo a idéia de que este instrumento lingüístico não pode ser o registo naturalista de qualquer coisa que exista, mas que tem que ser no plano da criação. Portanto, que o escritor pode, tem a liberdade, tem o direito de criar inclusivamente a ferramenta com que vai fazer a obra que quer fazer… Portanto, ensinou-me um sentido, que considero mais completo, da criação. (LABAN, 1980; p. 35).2

Alguns anos antes, em 1965, outro futuro escritor angolano, Ruy Duarte de Carvalho, também tomava contato com essa obra de Rosa, com Grande sertão: veredas. Em seu recente livro, Desmedida, de 2006, Ruy Duarte relata este encontro:

Quando aí por 1965, numa tabacaria da Gabela, interior do Kwanza-Sul, dei encontro com o Grande sertão: veredas em edição, a 5ª parece-me, da Livraria José Olympio, o facto foi, de facto e de várias maneiras, muito importante na minha vida. Foi um daqueles livros que vêm, literalmente, ao nosso encontro (…). (…) Defrontei-me então muito arduamente com as primeiras páginas do Grande sertão e deixei-me depois entrar naquilo para tornar-me, a partir daí e até agora, um leitor compulsivo, permanente e perpétuo, de Guimarães Rosa. (…)

Mas para o que talvez possa interessar agora, eu estava a encontrar ali, finalmente, um tipo de escrita e de ficção adequadas à geografia e à substância humana que eu andava então, técnico da Junta do Café, a freqüentar e a fazer-me delas por Angola afora. (…) E nas paisagens que Guimarães Rosa me descrevia, eu estava a reconhecer aquelas que tinha por familiares. Já porque de natureza a mesma que muitas paisagens de Angola – e em algumas das paisagens de Angola eu reconhecia aquelas, enquanto o lia – já porque a gente que ele tratava, gente de matos e de grotas, de roças e capinzais, era também em Angola aquela com quem durante muitos anos andei a lidar pela via do ofício de viver. (CARVALHO, 2006; p.85-86).

Podemos notar, por seu testemunho, que Ruy Duarte sentiu uma profunda identificação com a obra de Rosa, percebendo nela um tipo de escrita e de ficção adequadas à realidade angolana, humana e natural. Chama-me a atenção essa reação, bastante semelhante à de Luandino: ler Rosa parece ser encontrar algo que se buscava, descobrir caminhos para a constituição de uma literatura propriamente angolana (projeto dessa geração de escritores, relacionado ao da própria constituição do país independente). No caso de Ruy Duarte, como ele mesmo diz e se faz bastante evidente em sua obra poética, ficcional e ensaística futura, a leitura de Rosa não conduziu a uma experimentação linguística, como se deu com Luandino. Não há uma ênfase na recriação da língua em Ruy Duarte, mas a percepção de uma proximidade entre Brasil e Angola que conduziu o escritor a projetos literários e antropológicos (Ruy opera na fronteiras desses campos) como o que resultou em Desmedida, livro que vim citando. Trata-se de um relato de viagem pelo Rio São Francisco, em que o autor pretendia ter contato “direto” com a paisagem de Rosa.

Desmedida é um livro interessantíssimo. Falei que se trata de um relato de viagem, mas pode ser também tido como um ensaio sobre a sociedade brasileira, com foco na sua constituição a partir da expansão europeia. Isto porque, ao relato de sua viagem pelo São Francisco, Ruy Duarte mescla o relato de suas leituras, suas viagens por textos. A paixão pelo sertão rosiano conduziu o autor a uma vasta pesquisa sobre o sertão brasileiro (expandindo-se até o nordeste, passando, então, pel’Os sertões de Euclides da Cunha), configurando-se uma rede de referências bastante ampla. Em Desmedida temos um narrador que conta o que vê, e o que lê. O sabor de oralidade é evidente. Ao contar suas leituras, fala de Grande Sertão: Veredas, e cita o romance longamente. São várias páginas a ele dedicadas. Cito um momento que me parece especial.

Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães é questão de opiniães… O sertão está em toda parte.

É o sertão assim dito que pode projectar o que cada um tem a dizer num sertão palpável e atravessado até por rodovias de quatro ou seis faixas de asfalto. O real, de facto, nem está na partida nem na chegada, antes talvez no meio da travessia, revelado, pode ser, por João Guimarães Rosa a quem lhe escute mais do que parece estar dizendo.

E é isso que o projecta e é esse o seu projecto, o de Guimarães Rosa, a querer dizer o que diz numa freqüência de expressão muito localizada mas que aspira captar a experiência de todos, seja onde e como e quando for, dentro daquela ordem geral das emoções comuns fora da qual nem gente nem nada tem lugar: ódio, amor, morte, inveja, os pecados todos, os capitais e os outros, ocultação, dor, júbilo, despeito, etc… A questão será dizê-lo de maneira que corresponda à maneira, ao modo, como a vida é vivida, experimentada, sofrida, usufruída, gozada, sexualizada, sublimada por cada um em cada lugar. É a questão, quanto a mim, da invenção pela tradução, da verossimilhança pela plausibilidade e, querendo ainda, da fatigada, estafada, hesitação entre o local e o universal das exaustas problemáticas acadêmicas. Nos sertões e em viagem, por aqui, é uma questão de gente, suada e carnal, e vida. E volta a revelar-se que é preciso ir fundo. E situar o homem que há, e não há outro, nalgum lugar. E a viagem prossegue. E ainda sem largar Guimarães Rosa.” (CARVALHO, 2006; p. 98-99)

Ao tratar de Rosa nesses termos, de um alcance universal pelo particular, Ruy, além de repor, com certa ironia, a problemática teórica (bastante antiga) do universal/particular, explicita seu próprio projeto: a invenção pela tradução. Tanto como antropólogo como enquanto poeta, Ruy opera nesse lugar da tradução, falar dos africanos aos não-africanos, e dos não-africanos aos africanos. Um de seus livros de poemas, Ondula Savana Branca, consiste justamente na versão para o português de poemas orais africanos, das mais diversas culturas e regiões. A questão aqui me parece ser: não restringir o africano (como também evitava Luandino no que se refere à língua, ao falar popular) a uma representação exótica, ou seja, de exposição do outro enquanto irredutivelmente outro, mas de, pela e na diferença, tratar do humano – lidar com o comum. No caso de Ruy e de Luandino temos, então, duas dimensões de identificação com a obra de Rosa: 1) a percepção de uma proximidade entre Brasil e Angola (no caso de Desmedida, a parte central do livro consiste em uma tentativa de explicar o Brasil aos kuvale, e, então, a estratégia da comparação explicita, reforça, essa proximidade, mesmo que se marcando as diferenças); 2) a descoberta de um caminho literário (apesar de cada um ter seguido uma direção diferente) distinto do paradigma colonial – paradigma que desprezava o africano, suas culturas, línguas e mesmo questionava sua humanidade, reduzindo-o a algo de que se fala sobre e nunca para ou com. Aqui, surge a questão: até que ponto, no Brasil não vivemos, após a Independência, formas de colonialismo internas, do litoral (das cidades litorâneas) com relação ao interior? Até que ponto o sertanejo não se via representado, em nossos romances românticos, realistas e por vezes até neo-realistas, como o africano na literatura colonial portuguesa?3

Passo agora a outro escritor africano em que a influência de Rosa é decisiva, o moçambicano Mia Couto. Mia chegou ao Rosa indiretamente, via Luandino Vieira. Vejamos o que o próprio escritor tem a dizer (em texto publicado pela Revista Scripta do 2º semestre de 1998 – dedicada ao Rosa):

Foi Luandino Vieira que me fez fazer esse clic, e me autorizou a fazer alguma coisa que aprecio muito fazer. As histórias que eu queria contar não podiam ser contadas no português normal, no português que, afinal, Moçambique adotou como língua oficial.

Eu vi, mais tarde, depois de ter publicado esse livro [Vozes anoitecidas, de 1986], uma entrevista do Luandino Vieira em que ele falava que a mesma influência que ele tinha em mim, ele tinha a partir de um escritor que nós não conhecíamos, que se chamava Guimarães Rosa. Eu fiquei alertado, avisado, e queria muito que esses livros, desse tal escritor, chegassem até mim. (…)

Quando chegou o primeiro livro, Primeiras estórias, houve um fenômeno curioso. Eu não conseguia entrar nesse texto. Era como se eu não lesse, ouvisse vozes, que eram vozes da minha infância. Os livros de Guimarães Rosa quase me atiram para fora da escrita. (…)

Eu, quando penso sobre a questão de Guimarães Rosa, de Luandino Vieira e nesse tipo de trabalho literário que estou fazendo em Moçambique, eu imagino que entre esses três casos existe uma relação que eu gostava de tocar aqui, que não é literária. Para que o escritor chegue a esse relacionamento com esse tipo de linguagem, ele tem que ser, sobretudo, não escritor em momentos da vida. Ele tem que escapar daquela lógica, que é a da escrita enquanto sistema de pensamento. (…) Guimarães Rosa encontrou esse encantamento da linguagem, da fala, da anedota, do provérbio.

No meu caso, em particular, digamos, eu cheguei a essa possibilidade da escrita pelo lado não-literário, pelo lado da não-escrita também, pelo lado da oralidade. Eu vivo num país onde os contadores de histórias têm uma grande importância. Nessas zonas rurais eles são, de fato, os grandes defensores, os grandes reprodutores dessa via antiga dos valores rurais.” (COUTO, 1998; p. 11-12).

A importância da oralidade e das formas da oratura (termo que busca se contrapor a “literatura oral”) na ficção de Mia Couto é de se destacar. Em seu primeiro romance, Terra Sonâmbula, de 1992, para trazermos um exemplo, a presença do conto oral e do provérbio é decisiva na estrutura da narrativa. O uso inventivo da língua, à maneira de Rosa, via Luandino, também é recurso importante. Mia Couto explicita: “As histórias que eu queria contar não podiam ser contadas no português normal”. Era necessário reinventar o português para fazer literatura em Moçambique, e essa literatura tinha que ser, paradoxalmente, não-literária, no sentido de literatura escrita, de tradição escrita. Deveria incorporar a palavra oral, seus gêneros, sua vitalidade e força (mágica, salvadora, inclusive), sua lógica. Esse caminho Mia Couto trilhou na esteira de Luandino, que o trilhou na esteira de Rosa. Da mesma forma que os depoimentos de Luandino e Ruy Duarte, Mia Couto fala de um encontro: “e eram vozes da minha infância”, trata-se de um profundo reconhecimento, de uma muito grande identificação. E estamos em Moçambique agora, país historicamente mais distante do Brasil (mais vinculado à Índia, dentro do sistema colonial português, lembremos que sua costa é índica, e não atlântica). Mas a situação multilíngüe e multicultural, ainda mais radical em Moçambique que em Angola, parece ser a causa da identificação. No mesmo texto, considera Mia Couto:

(…) numa situação em que 80% das pessoas não têm a língua portuguesa como língua materna, em que há muita gente que não fala sequer português. Nessa circunstância é urgente que haja esse tipo de linguagem (…) como a linguagem que Guimarães Rosa usa e que permite essa situação de pulsação e de troca, de diálogo, de cultura, para criarmos um corpo que é ainda um projeto e que é Moçambique.” (COUTO, 1998; p. 12).

Para criar um corpo que é Moçambique – um Moçambique independente, livre do jugo colonial e das formas de representação coloniais – o caminho aberto por Rosa parece-lhe frutífero. Novamente pergunto: em que medida, aqui, no Brasil, não mantivemos (ou mantemos) formas de colonialismo internas, com suas correspondentes formas de pensamento e de representação? A ideologia colonial ampara-se em uma dicotomia fundamental: civilização/progresso versus selvageria/barbárie/atraso. Rosa, subvertendo esta dicotomia, produz uma obra literária e politicamente radical.4

Em 2005, Mia Couto publicou um volume de ensaios intitulado Pensatempos. Nesse livro há um ensaio que trata de Rosa, a transcrição de uma comunicação que apresentou na Academia Brasileira de Letras. Nesse novo texto, Mia recupera algo do anterior, que viemos citando (de 1998), e acrescenta coisas bastante relevantes:

É importante situar em que contexto histórico João Guimarães Rosa escreve a sua obra. Livros como Grande Sertão: veredas são escritos quando os brasileiros fazem nascer do “nada” uma capital no interior desse sertão (Brasília estava a acabar de ser construída) e se consumava um processo de controlo centralizado dessa realidade múltipla e fugidia. Na realidade, o “sertão” é erguido em mito para contrariar uma certa idéia uniformizante e modernizante de um Brasil em ascensão. (…) Um sertão cheio de histórias para contrariar o curso da História. (…)

Grande sertão: veredas revela um posicionamento político, não porque se constrói a partir de uma ideologia mas porque, na própria linguagem, João Guimarães Rosa sugere uma utopia, uma ideia de futuro que está para além daquilo que ele denuncia como uma tentativa de ‘miséria melhorada’. Esta linguagem mediada entre classes cultas e os sertanejos não existia no Brasil. João Guimarães Rosa sugere um Brasil em que os excluídos possam participar da invenção da sua História.” (COUTO, 2005; p. 108-110)

Em seguida, Mia Couto reflete, a partir e com Guimarães Rosa, sobre a própria natureza do fazer literário, em que podemos inferir também uma dimensão política:

O dever do escritor para com a língua é recriá-la, salvando-a dos processos de banalização que o uso comum vai estabelecendo. Para Guimarães Rosa, a língua necessitava ‘fugir da esclerose dos lugares-comuns, escapar à viscosidade, à sonolência.’ Não era uma simples questão estética mas era para ele, o próprio sentido da escrita. Explorar as potencialidades do idioma, desafiando os processos convencionais da narração, deixando que a escrita fosse penetrada pelo mítico e pela oralidade.

Rosa obedeceu assim a um projeto de libertar a escrita do peso dos seus próprios regulamentos. Para isso ele fez de tudo: do neologismo, da desarticulação da frase feita, da reinvenção de provérbios, do resgatar dos materiais da oralidade para os colocar em função não como anotação marginal mas como a alma do próprio texto.” (COUTO, 2005; p. 111).

Gostaria de notar que Mia Couto está atento para o lugar dos materiais da oralidade, como estava Luandino: não como algo marginal, para caracterização do sertanejo, mas como a matéria do fazer literário. Gostaria de notar também que todas essas estratégias para “libertar a escrita” que o escritor lista podem ser encontradas em seus livros. Guimarães Rosa e Luandino são a “escola” de Mia Couto, podemos dizer. Mia Couto parece sugerir, ainda aqui, que fazer literatura é abrir caminhos, impedir a repetição do mesmo, os automatismos; uma forma de resistência à naturalização, ao não-questionamento, à manutenção do status quo, tendo, em si, uma dimensão política, pois produz abalo no que está assentado, nas convenções em funcionamento. Eu poderia oferecer um elenco de formas proverbiais e de expressões cristalizadas alteradas, de palavras criadas, de incorporação de formas da oratura presentes na obra coutiana… Limito-me a sugerir a leitura de seus livros que vêm sendo publicados pela Companhia das Letras (de Luandino temos, no Brasil, Luuanda, e, de Ruy Duarte, Os papéis do inglês), e a alguns poucos exemplos que se seguem.

Em Estórias Abensonhadas encontramos: “O luar é bom mas não chega para tirar o espinho do pé.” (COUTO,1996; p. 70); “O lixo começa é no nosso nariz.” (COUTO,1996; p. 92); “A dor é uma estrada: você anda nela, no adiante de sua lonjura, para chegar a um outro lado. E esse lado é uma parte de nós que não conhecemos.” (COUTO,1996; p. 93). Como exemplo de provérbios africanos tradicionais, apresento a tradução de dois: “O valor da minha boca está no teu ouvido” (provérbio quimbundo, a mim dito pelo poeta angolano Arlindo Barbeitos e por ele também traduzido); “O barco de cada um está em seu próprio peito” (provérbio macua, citado por Mia Couto em Cada homem é uma raça).

De reinvenções de provérbios e expressões cristalizadas, trago os seguintes exemplos: “Quem tudo perde nem sabe o que quer. Nesta vida quem tem menos é quem mais perde.” (COUTO,1996; p. 126); “Mas meu companheiro de viagem já tem pulga e ouvidos desencontrados.” (COUTO,1996; p. 64); E, num fôlego só, em Cronicando: “Siga-se o improvérbio: dá-se o braço e logo querem a mão. Afinal, quem tudo perde tudo quer. Contarei o episódio, evitando juntar o inútil ao desagradável. Veremos, no final sem contas, que o último a melhorar é aquele que ri.” (COUTO,1991; p. 25). O humor decorrente dessas construções vem do estranhamento causado, da surpresa. Há contos inteiros que parecem operar com esse mecanismo, produzindo a quebra de expectativas do leitor pelo inusitado da trama narrativa. Como exemplo de invenções lexicais, de livros diversos, podemos ter: “lei-de-fora”; “administraidor”, “arvião”, “liquedesfazer-se”, “praiar”, “apassarinhar‑se”, “areiar”, “aproximarejar”, “desorfanar-se”, “medonhar”, “fluviar”, “abensonhadas”, “pó-sem-arroz”.

Parece-me que Mia Couto, como Luandino e Ruy Duarte no caso angolano, encontra em Rosa um caminho literário para a literatura moçambicana. Parece-me, ainda, que esse caminho literário é também político: estratégias para a produção de uma literatura que intenta subverter tanto a língua do colonizador quanto o próprio paradigma colonial.  Interessantemente, Rosa foi tido, durante muito tempo, aqui no Brasil, como politicamente reacionário…

Vale à pena uma pequena digressão aqui. Gostaria de lembrar, voltando a Luandino Vieira, que Luuanda ganhou um importante prêmio literário, cujas conseqüências não foram poucas. A Sociedade Portuguesa de Escritores premiou o romance de Luandino, em 1965, com o maior prêmio para novela e conto. Luandino estava preso, recentemente transferido para um campo de concentração em Tarrafal, Cabo Verde, para onde foram conduzidos presos políticos durante esse período da ditadura de Salazar e Marcelo Caetano (1928-1974). Seguiu-se uma campanha de difamação do escritor (apontado como terrorista) e do júri por parte do governo ditatorial, como também a extinção da Sociedade e perseguição de vários de seus membros. Esse dado a mim parece curioso: enquanto a obra de Rosa parecia um caminho para um escritor engajado na luta contra o colonialismo português (contra o fascismo e o capitalismo, diga-se de passagem), era recebida pela crítica brasileira como a-política, para não dizer alienada, não engajada, reacionária. Enquanto a literatura de crítica social, de valor político, seria a do chamado neo-realismo nordestino, a de Rosa foi vista como despida dessa dimensão, sendo um mergulho no mito e na experimentação formal.

Suzi Sperber, em Signo e sentimento, de 1982, dá testemunho dessa recepção da crítica (intensificada em nosso período ditatorial):

Gostaria de estudar Guimarães Rosa com a ótica da história para responder ao questionamento de falta de engajamento que lhe é feito por uma crítica que valora o escritor pelo engajamento notório e se envergonha de encontrar um grande valor literário que não corresponda ao padrão engajado aceito.

(…) Pretendo verificar se uma obra literária, no caso Grande sertão: veredas, é capaz de cumprir um papel respeitável, ainda que não registre aqueles dados que – segundo uma crítica do momento, crítica de má consciência burguesa – pareceriam ser os únicos dignos de comentário.” (SPERBER, 1982; p. 72).

Contudo, em Angola e, posteriormente, em Moçambique (Mia Couto é mais novo, nascido em 1955), Guimarães Rosa inspiraria escritores fortemente engajados na luta contra o sistema colonial e, com o advento da independência, contra outras formas de autoritarismo e opressão. Talvez nossa crítica tenha se mantido, durante bastante tempo, refém da dicotomia forma/conteúdo, ou de certo biografismo, além de muito atada a certos projetos de esquerda e pouco capaz de notar, na linguagem, nas estratégias narrativas, a dimensão fortemente revolucionária da obra rosiana (pois Rosa abala a dicotomia civilização e barbárie ao mesclar escrita e oralidade), dimensão revolucionária esta notada, de imediato, para lá do Atlântico.

 

publicado em Ser tão João, Annablume-Fapemig, 2012; organizado por Telma Borges, Fábio F. Camargo, Patrícia G. Tondinelli


Referências:

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CHAVES, Rita. A formação do romance angolano. São Paulo: FBLP, Via Atlântica, 1999.

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COUTO, Mia. Cronicando. Lisboa: Caminho, 1991.

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VIEIRA, José Luandino. João Vêncio: os seus amores. Lisboa: Caminho, 2004a.

VIEIRA, José Luandino. Nós, os do Makulusu. Lisboa: Caminho, 2004b.

VIEIRA, José Luandino. Luuanda. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

 

  • 1. No último capítulo d’A Formação do romance angolano, que precede as considerações finais do trabalho, Rita Chaves se dedica ao estudo da obra de Luandino Vieira atentando para a invenção de uma forma de narratividade que mescla escrita e oralidade, português e kimbundo. Para a estudiosa, há uma radicalização no trabalho com a linguagem (de hibridação linguística) em João Vêncio: os seus amores (Cf. CHAVES, 199; p. 186-204).
  • 2. Em comunicação apresentada no I Colóquio Nacional Poéticas do Imaginário: literatura, história, memória (ocorrido em Manaus no ano de 2009) propus uma reflexão em torno dessa nova concepção da criação ficcional que Luandino desenvolve através da leitura da obra rosiana. Neste trabalho investigo a produtividade da hipótese do controle do imaginário, levantada por Luiz Costa Lima em sua Trilogia do controle, para o estudo da produção e recepção crítica de obras literárias africanas. Pretendo, então, delinear formas de controle atuando na produção e recepção de obras literárias angolanas, devedoras especialmente da expectativa de que a ficção dê a conhecer a nação, tendo, apenas assim, certa dimensão política.
  • 3. No artigo “Há polifonia em Cangaceiros? Notas sobre um romance de José Lins do Rego” (Revista Mimesis, v. 27, ano 2006) sugiro que o romance de Rego representa o sertanejo a partir do paradigma civilização e barbárie, não sendo, por conseqüência, pertinente o conceito de polifonia bakhtiniano para sua análise. Neste romance fala-se sobre o sertanejo, e não para ou com.
  • 4. Desenvolvo este argumento no artigo “Às voltas com a aporia do mal: o redemunho”, publicado em dossiê dedicado à obra de Guimarães Rosa na Revista Cerrados (UnB), n.25, em 2008.

por Anita Martins de Moraes
A ler | 14 Dezembro 2012 | civilização e barbárie, colonialismo, Guimarães Rosa, literatura de temática sertaneja., literatura engajada, literaturas africanas de língua portuguesa, Mia Couto, Ruy Duarte de Carvalho