Descentralizar a Biopolítica, observações em torno de uma genealogia colonial da ecologia política

No séc. XIX, os grandes impérios coloniais criaram um conjunto de tecnologias políticas destinadas não só a explorar maciçamente o meio ambiente das suas colónias mas também a governar as pessoas em situação colonial por um ordenamento diferenciado de base racial do seu meio de vida, a que se pode chamar uma “mesopolítica colonial”. Retomo a noção de mesopolítica no sentido que lhe foi recentemente atribuído por Ferhat Taylan que, através de uma notável história conceptual e genealógica das relações entre os homens e o seu “meio” no Ocidente, tenta rastrear a emergência, durante os séc. XVII  e XIX, de toda uma série de saberes e de práticas que consistiam em governar as pessoas pelo ordenamento de seu meio ambiente1.

Esta perspectiva tem o seu quadro teórico original nos trabalhos de G. Canguilhem e sobretudo de M. Foucault. Foi este que mais se focou nas relações entre meio e governo, colocando a questão da “irrupção do problema da ‘naturalidade’ da espécie humana no interior de um meio ambiente artificial, da irrupção da naturalidade da espécie no interior na artificialidade política de uma relação de poder”2. Mas esta preocupação pelo governo do ‘meio histórico-natural como alvo de uma intervenção de poder’ parece pressupor, em Foucault, uma hierarquização entre dois tipos de ‘naturalidade’ (que, no entanto, se mantêm estritamente imbricadas uma na outra): a da espécie humana e a do meio (onde se misturam elementos naturais e artificiais)3.

Trabalhadores afro-americanos colhendo algodão em Houston, EUA, 1913. A escravidão no plantio de culturas como esta ajudaram a financiar a revolução industrial.Trabalhadores afro-americanos colhendo algodão em Houston, EUA, 1913. A escravidão no plantio de culturas como esta ajudaram a financiar a revolução industrial.

Esta hierarquização contribui para especificar, por um lado, que tipo de ‘naturalidade’ é prioritária na gestão política dos vivos e, por outro, como são consideradas as relações entre o governo e o meio, no seu conjunto. Dito de outro modo, uma coisa é centrar-se na responsabilidade pela vida da espécie humana para “exponenciar as suas forças, aptidões, a vida em geral”4 e assim subordinar o investimento político à naturalidade do meio e do meio ambiente – no que, a bem dizer, consiste um bio-poder e uma biopolítica como Foucault os entende. Outra coisa é pensar o investimento político na naturalidade dos vivos fora da centralidade acordada ao governo da espécie humana, de modo a que a naturalidade da vida abrangida se relacione mais amplamente com a biosfera em geral. 

No último caso, o aumento e a proteção dos vivos poderia referir-se não só, e não prioritariamente, à espécie humana, mas também a outras espécies vivas, como por exemplo as espécies vegetais, sobretudo as que foram e são ainda hoje objecto de apropriação ou de exploração massivas. Contudo, excepto para tipos específicos de recursos naturais localizados fora ou longe do alcance das sociedades humanas, uma parte substancial desses recursos pertence a ecossistemas nos quais existem também populações humanas. Então, neste caso, controlar a vida vegetal com vista a optimizar a sua exploração exige que certos grupos humanos pertencentes ao mesmo ecossistema sejam governados e constituídos em “populações”. Ou seja, neste contexto, trata-se de passar do questionamento sobre a maneira de modificar a naturalidade do meio ou do meio ambiente para melhor governar a vida dos homens constituídos em populações para outro tipo de questionamento. Este incidirá sobretudo sobre os modos de administrar a vida humana (isto é, os seus comportamentos nas trocas com a naturalidade do seu meio ambiente) para fazer aumentar biologicamente certas espécies de plantas tendo em vista a sua apropriação mais adequada ou o seu melhor aproveitamento.

Por um lado, esta inversão que coloca em primeiro plano o desenvolvimento da vida vegetal em detrimento da vida humana torna ambíguo o conceito de “biopolítica ambiental”: será que  remete para as transformações às quais se deve submeter a naturalidade do meio ambiente para desenvolver a vida humana ou diz respeito a ampliar o domínio dos vivos para dar conta de um conjunto de intervenções políticas diferenciadas em função da espécie ou das espécies cuja vida deve ser fomentada? Por outro lado, esta mesma inversão parece igualmente impor que, não só se revisite o modo de compreender a relação entre meio e governo, como também descentrar, por esta via, a própria noção de biopolítica. 

Jardim botânico tropical, LisboaJardim botânico tropical, Lisboa

Acompanhando Canguilhem e uma longa tradição de pensamento que remonta a Lamarck, Foucault defende que o meio “é suficiente para dar conta da acção, à distância, de um corpo sobre outro. É, por isso, o suporte e o elemento de circulação de uma acção (..). O meio, é um certo número de efeitos de massa, relativos a todos os que aí habitam (..). E, enfim, o meio aparece como um campo de intervenção no qual (..) se vai tentar atingir, precisamente, uma população”5. Ainda que Foucault insista no “confinamento circular dos efeitos e das causas, porque o que é efeito por um lado vai tornar-se causa por outro”, acontece que o meio aqui em questão é sempre o meio da espécie humana, o que o rodeia e que, ao mesmo tempo, permite a algumas tecnologias políticas produzirem efeitos de governo.

Porém, se nos propomos a descentrar a biopolítica, relativizando a centralidade da vida humana como objecto privilegiado do governo, a espécie humana, em vez de ser o alvo privilegiado de uma acção à distância que o seu meio torna possível, pode – por sua vez – passar a ser simplesmente um dos elementos entre outras espécies vivas, como por exemplo as espécies vegetais e, assim, integrar uma certa racionalidade governamental que vise, ainda assim, a sua conduta, isto é a conduta dos homens. Além disso, em virtude deste descentramento, o limiar de distinção entre biopolítico e meso-político arrisca a tornar-se demasiado vago, na medida em que a espécie humana poderia ser, simultaneamente, alvo directo e indirecto: alvo de uma acção à distância que, através da intervenção sobre o meio, tentaria desenvolver as suas forças e alvo indirecto de intervenção que visaria sobretudo fomentar o desenvolvimento vegetal, para nos limitarmos ao nosso cenário. Ou seja, a espécie humana pode vir a ser considerada, ao mesmo tempo, como uma espécie viva objecto, por vezes simultaneamente, de uma apropriação política dos seus dados biológicos e das trocas com o seu ecosistema (biopolítico) e também objecto de um conjunto de intervenções políticas indirectas ou à distância através das quais se procura explorar melhor outras espécies vivas; isto, por intermédio do governo dos homens que constituem, enquanto populações pertencentes a um dado ecossistema, o meio das espécies vegetais de que é preciso optimizar a exploração.

Descentrar a biopolítica significa exactamente pôr em discussão este privilégio antropológico em virtude do qual a espécie humana seria o alvo principal de uma apropriação dos seus elementos biológicos enquanto que outras espécies vivas só constituiriam um meio (o nível mesológico) para melhor se assegurar esta biopolítica (humana). Por outras palavras, trata-se não só de alargar o conceito de biopolítica até nele incluir o suporte das outras espécies que pertençam à biosfera mas também de contornar o esquematismo rígido que atribui quase exclusivamente à vida da espécie humana o privilégio de um estímulo e de uma protecção, relegando as outras espécies vivas para uma dimensão mesopolítica, que, em última análise, seria sempre subordinada a uma biopolítica centrada neste privilégio antropológico. Como se verá mais adiante, de um ponto de vista histórico, a subordinação da vida humana (cuja emergência, segundo Foucault, remonta ao séc. XVIII) fez-se rapidamente acompanhar da subordinação da vida vegetal, abrindo-se assim um campo de governamentalidade mais amplo e mais complexo que o do governo das pessoas onde as questões até então levantadas puderam ser desenvolvidas de um modo genealogicamente mais precisa.

É neste campo da governamentalidade que as colónias tiveram um papel tão importante como as realidades dos Estados europeus ou ocidentais. É por isso que uma genealogia colonial do meio ambiente pode contribuir para colocar a questão da descentralização de uma bio-política entendida como simples apropriação dos vivos da espécie humana. Assim se pode, com efeito, resgatar a história de como uma multiplicidade de investimentos científicos e políticos sobre o meio ambiente colonial foram, contudo, recusados e desvalorizados por uma série de resistências locais e pelos seus ‘saberes menores’ que, de facto, subverteram a pretensão imperial em determinar o que deve significar a natureza e o ‘meio ambiente’ assim como as maneiras de os governar. Ao contestar os enquadramentos epistemológicos e políticos europeus e coloniais, estas lutas conseguiram fazer emergir subjectividades ambientais novas que os impérios coloniais foram obrigados a reconhecer e a aceitar. Focar-nos-emos sobre um pequeno fragmento desta genealogia que diz respeito ao governo das florestas em certas zonas da Índia sub-himalaiana, as do Estado de Uttarkhand com as suas duas divisões, o Kumaon e o Garwal, no séc. XIX. Tentaremos reconstruir não só o papel desempenhado por um saber local baseado num antigo idioma de protesto social (o dhandak) mas também as transformações que sofreu face à incapacidade da administração colonial britânica em traduzi-lo para os seus enquadramentos culturais e estratégicos de acção. Estas lutas são importantes porque marcaram juridicamente a emergência das primeiras comunidades rurais ouvidas como subjectividades políticas capazes de operacionalizar formas de auto-governação na gestão do seu meio ambiente e que constituem, por isso, um dos exemplos mais evidentes da resistência à dominação epistémica e (bio)-política imperial.

Pablo AmaringoPablo Amaringo

A propósito deste emergência de novas formas de subjectividade político-ambiental, Arun Agrawal concebeu a noção de ‘governação do meio’ para designar o quadro conceptual no interior do qual as técnicas de si e as tecnologias do poder estão implicadas na criação de subjectividades novas em relação ao meio ambiente”, sublinhando a importância política de um hiato que se reproduz em permanência “entre o esforço que os indivíduos fazem para se remodelarem (i.e. para remodelarem a sua subjectividade, a sua identidade, Ndt) e as tecnologias de poder que os planos institucionais procuram consolidar. A formação de determinadas subjectividades ambientais alojados no centro desse hiato é – lembra-nos Agraward – tão contingente quanto política. É por se levar em conta esta contingência que se torna possível a introdução do registo político para pensar a formação de uma subjectividade” – um tipo de subjectividade que estaríamos autorizados a qualificar como ambiental6.

Para perceber plenamente esta contingência, não será inútil retomar as condições de emergência dessas subjectividades ambientais e tentar assim reunir uma perspectiva foucaultiana - como a de Agrawal - à perspectiva da ecologia política que consiste (como notou Joan Martinez Alier) num estudo dos conflitos sobre a distribuição ecológica. É deste ponto de vista que, neste artigo, nos limitaremos a esboçar alguns traços de uma genealogia ambiental da operacionalização de algumas tecnologias coloniais da governação do meio ambiente, tendo em consideração as lutas de resistência dos camponeses provocadas por tal tecnologia de governação7.

É preciso fazer recuar esta genealogia colonial do meio ambiente a 1864, data em que o Reino Unido - que já se tinha afirmado como líder mundial da desflorestação devido à devastação dos seus próprios bosques e das florestas das suas colónias – institui o Departamento Imperial das Florestas que visa explicitamente controlar a desflorestação intensiva dos decénios anteriores. Para atingir este objectivo, era necessário criar procedimentos jurídicos que permitissem reivindicar e salvaguardar o controle do Estado sobre as florestas, curto-circuitando o acesso de que beneficiavam as comunidades rurais desde há séculos, bem antes da colonização britânica. Madhav Gadgil e Ra. Guha defendem que a criação de um departamento especialmente qualificado para esta tarefa, marcou uma mudança qualitativa na percepção colonial do valor estratégico das florestas. O que é amplamente comprovado pelas primeiras tentativas de operacionalização de uma legislação compreensiva que visa regular o uso e o acesso às florestas – a saber os Indian Forest Acts, de 1865 e 1978. Este conjunto de normas revestiu-se de uma importância capital na medida em que constituiu um modelo de legislação das florestas aplicado depois também em outras colónias britânicas8.

Esta descontinuidade na governamentalidade colonial dos recursos das florestas pressupunha também o desenvolvimento de um domínio científico específico que visasse a vida e os vivos não em relação à espécie humana mas às plantas. O que implicava tanto a formação de um campo de disciplinas e sub-disciplinas (como a silvicultura, a botânica, a fitopatologia, etc.) como a criação correlativa de figuras profissionais. Esta tarefa foi realizada por intermédio de um certo número de especialistas alemães – a este respeito, lembremos, já agora, o papel decisivo de D. Brandis e dos seus discípulos. Este novo domínio científico – a silvicultura -  permitiu ao Departamento das Florestas introduzir manipulações múltiplas e brutais do meio ambiente para favorecer a produção e regeneração de espécies de madeiras mais resistentes e duráveis, como a árvore do sal (Shorea Robusta), a teca, o cedro dos Himalaias e o pinheiro indiano (Pinus roxburghii), usados para construir carruagens-cama (numa época em que a rede ferroviária se estendia muito rapidamente) ou para produzir resinas vegetais; tudo isto em detrimento dos carvalhos e de outras espécies de folhas largas, mais necessárias à agricultura de montanha e situadas no equilíbrio ecológico que caracterizava o modo de vida tradicional das populações locais.

Estas intervenções que se enquadram no que A. Crosby designou de “imperialismo ecológico”9 provocaram uma alteração da dita “sucessão ecológica”, isto é, do processo natural de longa duração de evolução e de desenvolvimento do ecossistema – de um estádio inicial a um estádio teórico dito “climático” -  a saber o estado final a que chegou um tipo de vegetação que se adaptou ao aprovisionamento de água mais rico que um dado ecossistema local é capaz de fornecer. Este ciclo corresponde também a uma sucessão por etapas de habitats e de comunidades vivas, vegetais e animais e dá, portanto, conta da estrutura de ocupação de um dado espaço ecológico (o biótipo). Ora, as manipulações feitas pelo Departamento das Florestas deram origem a uma verdadeira disjunção entre o curso natural da sucessão ecológica - na qual o carvalho constituía o “estádio climático” - e os imperativos da silvicultura comercial que, pelo contrário, favorecia a extensão das coníferas. 

Este tipo de gestão científica das florestas que se apoia no monopólio estatal foi posto em prática pelos dois Indian  Forest Acts de 1865 e 1878. Estas leis distribuíram a responsabilidade jurídica e administrativa da gestão das florestas entre agências governamentais diferentes (nomeadamente entre o Forest Department e o Revenue Department); classificaram as florestas, reservando vastas zonas às espécies mais valiosas para o comércio; e, por fim, definiram um conjunto de crimes cometidos contra as florestas; um domínio de actos proibidos (sobretudo nas ditas Reserved Forests); um sistema de multas para todas as violações das normas estabelecidas pelos Forest Acts. Para os habitantes das colinas do Kumaon e do Garhwal, cuja subsistência se baseava quer na criação de gado quer na agricultura, essas novas leis tiveram consequências consideráveis das quais, seguindo a reconstrução de A. Agrawal,  se pode esboçar uma lista não exaustiva: causavam restrições importantes no que diz respeito aos direitos habituais de corte de árvores para a forragem e a lenha para aquecimento; limitavam os direitos de pastorícia dos aldeões; restringiam o uso dos produtos da floresta que não derivavam da madeira; proibiam a extensão dos espaços cultivados; aumentavam as prestações de trabalho impostas aos aldeões; aumentavam o número de guardas florestais; suprimiam a prática anual que consistia em queimar o tapete florestal para obter forragem verde; obrigavam os aldeões não só a comunicarem às autoridades os fogos ilegais mas também os obrigavam a colaborar com os guardas florestais para os apagarem10.

Numa perspectiva foucaultiana, deve prestar-se atenção à materialidade das práticas destes aldeões, resultante das relações entre poder e saber, ou ainda entre biopolítica colonial e silvicultura científica. Neste enquadramento, pode considerar-se a governamentalidade  colonial do meio ambiente como uma maneira de “orientar comportamentos”, moldando o processo de normalização em função do meio para determinar os procedimentos ambientais permitidos e os que não o são (11). Os procedimentos definidos pelo poder colonial afectaram, na realidade, um modo de vida costumeiro, tradicional que regulava as trocas ecológicas entre os recursos naturais e as populações rurais dessas regiões dos Himalaias muito antes da colonização britânica. Estes procedimentos constituem o verdadeiro campo das relações de poder e revelam de maneira evidente como um discurso científico (o da silvicultura) e certas tecnologias governamentais (os Indian Forest Acts) entraram, de facto, em conflito com toda uma série de conhecimentos locais e práticas sociais pré-existentes (12).

A este propósito, seguindo os estudos de P. Descola (13), A. Escobar lembrou que “a natureza só existe num universo denso de representações colectivas que fundamentam directamente maneiras diferentes de fazer coisas com/na natureza. Resumindo, várias comunidades no mundo representam e usam o seu meio ambiente de uma maneira que contrasta de forma evidente com os modos mais comuns e mais aceites de olhar para a natureza enquanto recurso exterior aos seres humanos de que nos podemos apropriar livre e indiferentemente. As práticas que determinam como a natureza é apropriada e utilizada são definidas não só por factores económicos, ou por condições ecológicas, mas também por significações culturais” e, é neste sentido que se coloca o problema de articulação de duas maneiras de considerar e utilizar os recursos naturais (14).

Mas não se trata de comparar e distinguir dois regimes de verdade sobre a natureza em função da sua maior ou menor capacidade técnica de apropriação ou de manipulação da natureza ou do meio ambiente (silvicultura versus saber indígena); trata-se antes de abordar estes dois regimes de verdade de maneira mais compreensiva, desde logo porque para estas populações rurais a capacidade técnica de dispor da natureza é apenas uma das funções ligadas às formas éticas e políticas de existência imbricadas com o meio ambiente local. É no interior deste enquadramento conceptual e metodológico que ganha todo o seu significado o que Foucault designou como uma “insurrecção dos ‘saberes subjugados’, porque desqualificados, enquanto ‘saberes menores’ (15) pela violência epistémica colonial (16).

É a partir deste cenário que me parece possível analisar as formas de resistência que os habitantes de Kumaon e de Garwahl desenvolveram. Se não se considerasse este tipo de resistência, as transformações internas - que afectaram tanto a silvicultura científica como as próprias tecnologias governamentais – surgiriam de forma menos clara. Contudo, deve igualmente evitar-se pensar esta reactivação dos ‘saberes menores’ como  monolítica, isto é, como um saber que se preservaria tal qual sem que a sua mobilização em práticas e situações conflituais lhe impusesse determinadas modificações. Pelo contrário, deve sublinhar-se a emergência de elementos de descontinuidades no interior deste saber à medida que se insere na trajectória dos protestos sociais dos habitantes das colinas dos Himalaias, acompanhando o reforço progressivo e cada vez mais invasivo da ordem colonial. É assim que a reactivação de ‘saberes menores’ deixará emergir o seu carácter modular e estratégico.

No seu notável estudo sobre os protestos sociais nos Himalaias, R. Guha debruça-se justamente sobre a importância de uma mudança específica que revela uma descontinuidade essencial nas formas e nas estratégias de resistência (17). Guha afirma que, numa primeira fase, a partir mais ou menos da altura do Forest Act de 1878, os aldeões limitavam-se a adoptar atitudes não colaborativas contra os esforços dos funcionários coloniais para aplicar as novas normas. A este propósito, Guha utiliza as noções de ‘formas quotidianas de resistência camponesa’ e ‘armas dos pobres’, cunhadas por J. Scott (18) e as de “protestos evasivo’ (avoidance protest) que vai buscar a M. Adas11, para abordar toda uma série de estratégias de resistência baseadas na não-confrontação, como empatar, a falsa condescendência, a ignorância fingida, a migração, a violação dissimulada da lei (breaches of the law), os apelos sociais às ‘tradições’12

Estas práticas eram codificadas por um antigo habitual idioma de protesto social designado dhandak, que retirava a sua legitimidade da tradição e não visava perturbar a ordem social. Estas práticas quotidianas de resistência, presentes mesmo quando a rebelião era manifesta, dirigiam-se sobretudo aos funcionários incompetentes ou corruptos que não respeitavam os limites tradicionais do seu poder. Estes mecanismos de protesto operavam como uma válvula funcional, que produzia regularmente manifestações construtivas de desagrado (21). Guha defende também que a fonte de autoridade deste pacto, entre governantes e governados, se apoiava na ligação divina de parentesco, uma qualidade que pode ser encontrada noutros reinos e monarquias locais. Uma tal relação entre governantes e governados era também marcada por um estilo de dominação patriarcal que administrava a justiça e protegia os sujeitos de maneira paternalista (22). Um outro aspecto muito importante e distintivo do dhandak era a ausência de violência física: os camponeses preferiam um abandono temporário do trabalho para reivindicarem os seus direitos através de acções demonstrativas, como marchas sobre a capital, onde as massas se juntavam à volta de um templo ou de um santuário, ou ainda pedindo uma audiência ao rei (23).

Entre 1910 e 1911, quando as leis draconianas postas em prática pelos Forest Acts foram reforçadas de forma rígida, Guha assinala que os aldeões tinham tendência a abandonar as ‘armas dos pobres’ acima mencionadas, para adoptar “formas de protesto e de confrontação mais explícitas: ataques a redes de comunicação, a edifícios do Estado e, cada vez mais frequentemente, a florestas cuja madeira era destinada ao comércio e aos depósitos de resina” (24). Uma dessas práticas de resistência teve, especificamente, uma grande importância para as autoridades locais: consistia em incendiar florestas reservadas à exportação comercial. Tratava-se de um re-inscrição estratégica de uma prática tradicional (fazer queimadas do tapete florestal para obter forragem verde) no interior de um idioma novo de protesto, já não baseado na não-confrontação do dhankat, mas abertamente conflitual e violento que, contudo, se apoiava num mesmo conhecimento vasto e detalhado do meio ambiente local com todas as suas montanhas e vales.

Os anos 1916 e 1921 foram muito secos e, nesta altura, o sistema colonial de vigilância viu-se contestado por uma enorme quantidade de fogos voluntariamente ateados: um fenómeno que as autoridades chamaram “planned incendiarism” e que provocou danos massivos na produção de madeira comercial bem como na extracção de resina, comprometendo irremediavelmente os planos de regeneração adoptados pelo Departamento das Forestas. Incapaz de reagir pelo uso da força, o governo colonial do Kumaon foi obrigado a instituir, em 1921, o Kumaon Forest Committee para examinar os protestos contínuos destes aldeões. Depois de ter recolhido mais de 5000 testemunhos, a Comissão enviou ao governo uma lista de recomendações que este último tentou concretizar, nomeadamente em dois aspectos principais: por um lado, a ‘des-reserva’ de vastas parcelas das novas Reserved Forests, criadas entre 1911 e 1917; por outro lado, a definição de florestas para uso exclusivo das comunidades locais. Tratava-se de florestas cuja gestão teria sido feita através de um conjunto muito lato de regras enquadradas pelo governo, mas que poderiam também ter sido levadas a cabo pelos próprios aldeões em função das necessidades que emanassem do seu uso quotidiano e das suas condições ambientais específicas. Enfim, em 1931, os Forest Panchyat Rules autorizam formas  comunitárias de auto-governação, estabelecidas pelos aldeões na gestão do seu meio ambiente.

Este novo corpo legislativo só virá a ser modificado por duas vezes, em 1971 e 1976, e constituirá a base de numerosos sistemas de gestão dos common-pool resources 825). Estas lutas são, do ponto de vista histórico, a base das relações profundas e duráveis que permitem ainda hoje às comunidades dos sub-Himalaiaas transformar os indivíduos implicados nas práticas reguladoras das suas florestas em subjectividades ambientais. Estas formas de organização ‘biopolítica’ comunitária conseguem criar indivíduos que se preocupam com o seu meio ambiente e para quem este se torna uma categoria conceptual que organiza modalidades cooperativas de politização do espaço colectivo enquanto ecossistema, segundo uma instância que está na base de cidadania ecológica.

A emergência destas formas de subjectividade ambientais atesta também a necessidade (bio)política de compreender as relações individuais e colectivas com o meio ambiente, muito para lá da dicotomia entre propriedade/gestão pública e privada, imposta primeiro pela colonização e depois pelo discurso desenvolvimentista. O que também pode emergir é uma concepção do espaço social atravessada de uma ponta à outra pela ideia de bens comuns e da cooperação comunitária onde a ecologia ocupa um lugar biopolítico importante no processo de subjectivação político. São estas subjectividades políticas que actualmente procuram resistir aos imperativos do mercado e à despolitização local produzida pela centralização burocrática: dois fenómenos que, para as comunidades, representam, muitas vezes, uma ameaça de dissolução em relação ao seu meio ambiente.

São, por isso, desafios crucialmente enraizados no presente global e que exigem um descentramento epistemológico que torne possível  a consideração – nos momentos mais conflituais, e talvez sobretudo nesses – da multiplicidade das formas de trocas com a natureza das mais diversas comunidades humanas que existem neste planeta. É por isso que genealogias como esta se revelam úteis na medida em que podem ajudar-nos a retraçar a história dos conflitos e dos desafios epistemológicos, das negociações parcialmente bem sucedidas ou das que falharam, à volta da distribuição ecológica, nos diferentes Suis para melhor compreender as lutas que, há pelos menos século e meio, atravessam o planeta; uma genealogia que, precisamente, na maioria dos casos, não pode dispensar um exame da experiência historicamente diferenciada da colonização. É devido a esta genealogia colonial do meio ambiente que se pode levantar a questão de saber como, através de que saberes, que tipos de normatividade, que formas de subjectivação, é possível descentrar do paradigma biopolítico pelo intermédio da ecologia política.

  • 1. F. Taylan, La rationalité mésologique : connaissance et gouvernement des milieux de vie (1750-1900), thèse de doctorat soutenue à l’Université Bordeaux 3, le 12 septembre 2014.
  • 2. Foucault, Sécurité, territoire, population. Cours au Collège de France. 1977-1978, éd. M. Senellart, Paris, Seuil/Gallimard, 2004, p. 23.
  • 3. Ibid., p. 22-23 : « Le milieu, c’est un ensemble de données naturelles, fleuves, marécages, collines, c’est un ensemble de données artificielles, agglomération d’individus, agglomération de maisons, etc. ».
  • 4. M. Foucault, La volonté de savoir, Paris, Gallimard, 1976, p. 185.
  • 5. M. Foucault, Sécurité, territoire, population, op. cit., p. 22.
  • 6. A. Agrawal, « Environmentality. Community, Intimate Government, and the Making of Subjects in Kumaon, Environmentality: India », in Current Anthropology, vol. 46, n. 2 (2005), pp. 161-190, en part., p. 166 (souligné par moi). Id.,Technologies of Government and the Making of Subjects, Duke University Press, Durham 2005.
  • 7. J. Martínez Alier, The Environmentalism of the Poor. A Study of Ecological Conflicts and Valuation, Edward Elgar, Cheltenham (UK)-Northampton (USA) 2002.
  • 8. M. Gadgil, R. Guha, This Fissured Land : An Ecological History of India, Oxford University Press, New Delhi, 1992.
  • 9. A. Crosby, Ecological Imperialism: The Biological Expansion of Europe, 900 – 1900, Cambridge University Press, Cambridge (UK) 1982.
  • 10. A. Agrawal, Environmentality: Technologies of Government and the Making of Subjects, cit., p. 65 et suivantes.
  • 11. M. Adas, « From Avoidance to Confrontation: Peasant Protest in Precolonial and Colonial Southeast Asia », in Comparative Studies in Society and History, vol. 23 (1981), p. 217-247.
  • 12. R. Guha, The unquiet woods: ecological change and peasant resistance in the Himalaya, cit., p. 126.
Translation:  Manuela Sousa Tavares

por Orazio Irrera
A ler | 19 Outubro 2019 | ambiente, Biopolítica, governo