Comer a língua

1. Querem ver o tamanho do Brasil?

— Como é que é lá no Rio? É mesmo aquela violência que a gente vê na televisão? — pergunta-me um jovem paulista da cintura industrial. Vive do salário, acaba de ser pai, fez uma casa lá na zona leste. — Botei um pedacinho de gramado, ontem mesmo estive cortando.

Ontem, domingo: milhões de paulistas das quatro cinturas cardeais a cortarem um pedacinho de gramado, a cuidarem dos filhos, a torcerem pelo Corinthians, sem nunca terem posto os pés no Rio de Janeiro.

Para muitos assalariados, ainda é caro viajar dentro do Brasil. E o Rio visto do resto do Brasil é uma ficção. Filme de bangue-bangue e novela. Até a língua é diferente.

— Por exemplo, padaria — diz um meu amigo mineiro que vive em São Paulo há 20 anos. — Padaria no Rio é lugar onde se vende pão!

Para um paulista, isto mostra bem o estado do Rio: só tem boteco, não tem padarias como em São Paulo, ou seja, cafés.

Leitor, não pergunte nas ruas de São Paulo onde pode achar um café. As pessoas vão achar que está desesperado para tomar café. Quando quiser achar um café, peça uma padaria.

Depois, tal qual no Rio, café-com-leite é uma média, torrada é pão-na-chapa, tosta é misto-quente. E com calor mesmo, sumo é suco e lima é limão.

Questão de apetite, na língua como no resto.

2. Talvez por ter passado várias noites em orgias teatrais, estou tomada pelo espírito antropofágico de Oswald de Andrade: “Só me interessa o que não é meu.”

— Aqui a gente se come — diz-me Zé Celso quando nos sentamos no banco de trás do táxi.

Está a chover e além de um cacho de bananas transportamos um chifre de boi para chamar o gado, o chamado berrante. Impávido, quase fleumático, o taxista cruza a Alameda Santos sem estranhar. Nada do que é humano é estranho a uma cidade realmente cosmopolita e São Paulo é a mais cosmopolita das cidades porque a gente se comeu, como diz Zé Celso.

José Celso Martinez Corrêa, fundador do Teatro Oficina, soa-vos?

A grande tenda ambulante do Oficina acaba de concluir uma digressão pelo Brasil, “Dionisíacas em Viagem 2010”, conjunto de quatro peças, algumas com seis horas. Em Belo Horizonte, terra ensimesmada, mineiros houve que arrancaram a roupa sem esperar pelos actores. Em São Paulo também (mais pormenores no Ipsilon).

“O que atropelava a verdade era a roupa”, dizia Oswald.

Desde Abril, foram muitas noites de 1500 pessoas por noite, e de graça, e a esmagadora maioria ainda não tinha nascido quando o Teatro Oficina arrancou a roupa a Caetano Veloso, então espectador das “Bacantes”.

Quem disse que o Tropicalismo acabou?

O Oficina não virou vegetariano.

3. Português a falar brasileiro não tem jeito mesmo quando tem. Mas o que não tem jeito mesmo é perder tempo a não ser entendido. Eu não vou subir a favela e dizer sítio quando posso dizer lugar, ou apelido quando posso dizer sobrenome, ou alcunha quando posso dizer apelido, ou apanhar o autocarro quando posso pegar o ônibus.

Português a falar brasileiro nem é jeito de dizer, porque português e brasileiro falam sempre português, em toda a sua mestiça, desarraçada extensão.

Nenhuma outra língua é tão falada no hemisfério sul.

Finco os pés onde estou para a usar. Se não me esqueço de quem sou, porque terei medo do que serei? Eu vou escutar e nós vamo-nos entender. Pegar ou botar? Sacola ou saco? Fumo ou tabaco?

Esperem lá. E quanto do que hoje é brasileiro foi português antigo que Portugal perdeu? Como o cardápio em Portugal encolheu, certamente por falta de apetite! E eles continuam a vir, dietistas, higienistas, fiscais-de-contas, reduzindo a língua a um quartinho, e de colarinho: não respire, não respire.

Avé a poesia, cheia de fome. Leram o último Herberto Helder, mais jovem que nunca? E o que ele faz não é comer a língua inteira, com travesti brasileiro e tudo?

A língua tem um coração, há que comê-lo para que bata. O que se escreve em Portugal não deve ser alterado no Brasil porque o som do seu coração é esse, e assim seja com o que se escreve no Brasil. A língua leva o lugar, que será lido quanto mais for ouvido. Quando dois lugares se encontram dá uma bagunça. Então artigo vira matéria, quarteirão vira quadra, meu vira cara, e não me chateiem vira não enche o saco. Tem brasileiro nisto? Tem. Ou seja, é a língua portuguesa.

4. Antropofagia é fusão. O Tropicalismo encontrou o Brasil nos anos 60. Mas talvez o Tropicalismo possa recomeçar o mundo nos anos 00. Enquanto a Europa, coberta de neve, vai travando os seus braços de ferro nacionais sem saber o que fazer a tanto imigrante, eu ouço a voz de Zé Celso no táxi:

— Aqui a gente se come.

Foi o que fizeram os imigrantes Brasil fora, asiático com siciliano, libanês com askenazita. E continuam.

Não sei o que vai dar este banquete. O Dylan Thomas que conheci na praia há duas semanas agora assina Dylan Tupiniquim. Brasileiro não tem medo de não ser quem é: come o outro e fica mais forte. Gosto politicamente desta ideia. Se israelitas e palestinianos se comessem como no Brasil tínhamos uma paz cabocla.

E que coisa melhor podia ter acontecido à língua portuguesa que topar com o Brasil? Só os impérios perdidos têm medo dos bárbaros: medo de serem tudo o que são.

 

Crónicas Atlântico Sul, originalmente no jornal Público, 31/12/2010

alc.atlanticosul@gmail.com

 

fotografias de Marta Lança 

 

por Alexandra Lucas Coelho
A ler | 3 Janeiro 2011 | antropofagia, Brasil, língua portuguesa, lusofonia