Comemorações institucionalizadas e monstros da memória

Será que a memória – como diz o poeta Júlio Castañon Guimarães, num famoso poema de um só verso – “tem os seus dias contados”? 

A memória possui o seu dia especial de comemoração, o dia da memória, 27 de Janeiro. É o dia da memória da Shoah que corresponde ao momento em que, em 1945, o Exército Vermelho  durante a operação Vístola-Oder e o seu inexorável avanço sobre a Alemanha, liberta o campo de concentração de Auschwitz. Em 2005, uma resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas elegeu o dia 27 de Janeiro como o dia de comemoração das vítimas do extermínio operado pelos nazis.

Folhas de Outono | 2018 | Autor anónimoFolhas de Outono | 2018 | Autor anónimo
Um país como a Itália antecipou esta decisão decretando, em 27 de Janeiro de 2000, o dia da memória através da Lei 2011 Colombo-De Luca. Mesmo que de alto valor simbólico, e com meritória antecedência, a decisão italiana abriu um vasto terreno de discussão e de polémicas. O que o caso italiano veio a mostrar é a fragilidade imanente à construção de uma comemoração pública. Antes de tudo, pela lógica escorregadia do uso político do passado. Pelo seu peso ideológico no presente aquilo que poderia ter sido uma ocasião para fixar uma memória comum sobre o maior genocídio do século XX tornou-se a ocasião de disputa sobre a necessidade de celebrar diferentes passados trágicos – o extermínio dos hebreus na Europa, mas ao lado dos gulag soviéticos ou das foibas triestinas – e esfarelou-se numa reflexão que deveria denunciar o racismo e as suas atualizações tecnológicas no horror de um genocídio lucidamente planeado.
O cerne da questão, como foi notado por David Bidussa, é a fundação de uma monumentalização que possa efetivamente criar um universalismo compartilhado que não se dissolva num conjunto de reivindicações singulares dentro do infinito mapa dos massacres horríveis, de todos os signos, ideologias, religiões. A institucionalização da comemoração desempenha uma função crucial na articulação e construção de novas cidadanias. Pense-se, por exemplo, como um “dia da memória” é fundamental no campo da educação e da construção de projetos de formação úteis para as escolas de hoje e de amanhã. Todavia, e ao mesmo tempo, a solenidade deste dia confirma a fragilidade da morfologia própria da memória, do seu núcleo nevrálgico e frequentemente trágico, ou seja, da possibilidade da sua transmissão. Se, como ocorre macroscopicamente na era da testemunha, é unicamente a experiência vivencial do passado que oferece uma garantia de compreensão do que se passou, o que acontecerá quando a última testemunha de um evento trágico tiver morrido?
O dever da memória – que é uma componente ineludível, uma reivindicação justa da institucionalização memorialista – irá fragmentar-se até desaparecer, isto se este dever, como ato de urgência no instante do perigo, não se transformar num conhecimento crítico da história. Nenhum dever aguentará o vácuo da consciência. Sobretudo quando a atual assimetria entre memória e história – refiro-me ao caso da Shoah, mas também a inúmeros outros casos problemáticos, como por exemplo a experiência do colonialismo de Portugal, da França ou da Bélgica, para nomear os três contextos de reflexão do projeto Memoirs – expõe o risco de, uma vez esgotadas as fontes da memória individual, a destruição do passado não deixar vestígios, ficando sem registo ou rasto. Então, o aparente automatismo da convergência da memória coletiva numa história constituída enquanto contrato comunitário sobre um passado controverso falhará inelutavelmente, reemergindo tendências revisionistas ou negacionistas que se insinuarão nos vazios de consenso sobre o passado.
O risco de uma memória ameaçada pelos reusos do passado encontra na forma das comemorações públicas esvaziadas a sua assustadora celebração. Pense-se no que são hoje algumas cansadas comemorações de datas históricas que, ano após ano, acabam por ficar sempre mais gastas: o fim da Grande Guerra, o dia 25 de Abril em Portugal e em Itália, etc. Portanto, ou as comemorações conseguem manter a sua profundidade crítica, ou correm o risco de se transformar rapidamente em formas desbotadas de exercícios de retórica, de mera discursividade sem referente.
A cena do que será esta paisagem distópica de uma pós-memória de memória manipulada, ou seja, o que ocorrerá depois da última testemunha, é magistralmente tematizada num romance recente de um autor israelita, Yshai Sarrid, num livro forte e assustador, Il mostro della memoria, publicado em Israel em 2017 (com tradução italiana de 2019 e lançado no dia da memória). O romance é constituído por uma longa carta que o narrador escreve ao diretor do “Yad Vashem”, o museu sobre a memória dolorida da Shoah em Jerusalém. Por acidentes biográficos (não foi selecionado para integrar o corpo diplomático, como ambicionava), o narrador ganha uma bolsa de doutoramento e resolve especializar-se com um projeto de tese ambicioso. Na interminável bibliografia acumulada sobre o extermínio, consegue encontrar um recorte específico adequado aos seus interesses: reconstruir de forma minuciosa e obsessiva o funcionamento mortífero, ou seja, as técnicas de extermínio dos campos. A tese teria o título eloquente deAnalogias e diferenças nos mecanismos de extermínio nos lager alemães durante a Segunda Guerra Mundial.
O narrador de Il mostro della memoria começa a trabalhar na Polónia como guia turístico dos campos, acompanhando turmas de alunos e escolas, visitantes e curiosos, que perante os vestígios da destruição de massa, reusam o passado, envolvendo-se nas bandeiras e entoando os cantos que celebram a grandeza de Israel que não foi destruído. Ao lado dele, está uma idosa testemunha, Eliezer, que sobreviveu ao massacre. O narrador é o especialista, é quem possui o conhecimento e a erudição do passado, mas não a experiência; a testemunha é quem acrescenta à narração toda a dimensão dramática da vivência pessoal. Depois da desistência de Eliezer, ele tenta encontrar outros sobreviventes substitutos. Mas eles são ou muito velhos, ou vivem ainda sob os efeitos do trauma, não querendo mais regressar aos lugares do horror. Assim, o guia doutorado fica sozinho com o seu cinzento acervo de conhecimentos, catalogados e bem ensaiados, mas postiços, em todos os campos da Europa central.
A sua atividade regista sucessos crescentes: é procurado como consultor por uma empresa de videojogos que quer produzir um jogo que “simule” a condição dos detidos dos campos; leva importantes figuras políticas de Israel que pretendem colocar a própria imagem como devotos cultores da memória do grande trauma; colabora com a organização de um evento militar que ficionaliza uma ocupação e uma libertação simbólicas de um campo por parte do exército israelita; acompanha um diretor de cinema alemão que pretende produzir um filme sobre o extermínio. Mas o sucesso profissional corresponde a uma degradação pessoal crescente, a uma perda abissal de confiança, a uma destruição de quem não aguenta mais o peso da própria narração treinada, mas oca e falsificada, vivendo o drama de consciência de que não há justiça póstuma possível.
Por isso os mortos começam a aparecer-lhe das ruínas da história, numa visão em que qualquer representação é falsa: “Concentre-se, escute, estão aqui, por volta de nós, parte da natureza. […] Todas aquelas pessoas estão aqui, neste campo, e gritam”. As palavras secam, tornam-se o simulacro vazio de uma impotência. E isto produz uma raiva surda e incontrolável que desintegra as seguranças profissionais do “especialista de campos de extermínio poloneses”. O monstro sacrificial da memória é quem destrói o impossível resgate do passado por parte das testemunhas, a impossível narração do passado pelo exclusivo conhecimento indireto, ainda que requintado, dos especialistas.
Como no dia da memória, o fracasso confirma que não será uma tecnicidade que salvará um passado definitivamente perdido, mas uma compaixão humana transformada em consciência histórica, ainda toda por construir, diante de um passado abjeto e terrível. Este será o único antídoto capaz de manter enterrado, no seu horrível refúgio, o monstro de um passado de brutalidade ilimitada, que não se deixa narrar. Pelo menos temporariamente, no entanto.

 

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Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS– Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horiz
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por Roberto Vecchi
A ler | 12 Março 2019 | Itália, memória, políticas da memória, Segunda Guerra Mundial