Assassinos

Fantástica (da série Open House) | 2006 | José Bechara (cortesia do artista)Fantástica (da série Open House) | 2006 | José Bechara (cortesia do artista)

A dado momento no romance Beloved (1987), de Toni Morrison, galardoado com um Pulitzer, Sethe, a protagonista diz: “Algumas coisas vão-se. Passam. Algumas coisas ficam. Eu costumava pensar que era a minha rememória. Você sabe. Algumas coisas esquecemos. Outras nunca se esquecem. Mas isso não. Sítios, os sítios ainda estão lá. Se uma casa arde, ela desaparece, mas o lugar - a imagem dela - permanece, e não apenas na minha rememória, mas lá fora, no mundo. O que eu recordo é uma imagem flutuando algures longe da minha cabeça” (p.43). Num artigo recente, Nadine El-Enany, professora da Faculdade de Direito de Birkbeck (Universidade de Londres), referiu-se a este romance sobre a escravidão e suas consequências para nos lembrar não apenas dos perigos de esquecer o passado, mas também do fato de que, para alguns, esquecer nunca será uma opção (1).

El-Enany cita Catherine Hall, em Histories, Empires and the Post-Colonial Moment que, já em 2002, referiu precisamente Beloved para alertar sobre as terríveis consequências para a Europa de esquecer o seu passado imperial e colonial: “Beloved, de Toni Morrison, evoca poderosamente um passado que afro-americanos e americanos brancos acharam doloroso demais para lembrar, mas que precisa de ser recuperado através do que a autora  chama de ‘rememória’ para que essa sociedade se possa reorientar de tal maneira que possa chegar a um acordo com a sua própria história racializada. Se tais memórias não são ‘lembradas’, elas assombrarão a imaginação social e perturbarão o presente” (p.66). Pode dizer-se que o presente da Europa é interrompido precisamente pelo esquecimento intencional de tais memórias a ponto que o futuro da Europa, pelo menos o seu futuro como uma comunidade democrática de estados livres e um projeto de paz bem sucedido, está seriamente ameaçado.

Chegamos agora ao ponto de estarmos a menos de um mês de uma separação possivelmente danosa e altamente prejudicial, do Reino Unido da União Europeia, a 29 de março de 2019. Deve-se ter em mente que a Europa tem muitas outras preocupações além desta, seja na forma da disseminação e crescente influência de forças xenofóbicas ultra-nacionalistas alastrando como fogo por todo o continente, seja na forma do grande influxo de migrantes que, em parte, ajudou a atear precisamente aquelas chamas. Mas mesmo que o Brexit possa parecer uma questão menos importante, dependendo de qual lado do Canal se vive, ele deve ser visto como inextricavelmente ligado a estas outras duas grandes questões.

Sem dúvida, pode dizer-se que o Brexit é apenas uma forma aguda do mal-estar profundo que aflige o continente. Visto desta maneira, um olhar mais atento à situação iniciada pelo Reino Unido pode ajudar-nos a entender melhor os perigos para que Hall alertou. Ou seja esquecer o passado imperial e colonial do Reino Unido e da Europa está a assombrar a nossa imaginação social a ponto de nos arriscarmos a perder o sentido não apenas da História, mas do nosso lugar no mundo no momento presente. Recentemente, foi anunciado que o custo para o Reino Unido desde o referendo é de aproximadamente 40 bilhões de libras por ano, ou seja, 800 milhões todas as semanas. Uma maneira de compreender como, apesar do que se tornou inevitável e claro de ver, as evidências que apontam para esse imenso dano económico já sofrido, é refletir sobre como o Brexit tem vindo a ser impulsionado pela nostalgia pós-imperial. Este é um ponto sugerido, entre outros, por Nadine El-Enany: “Os termos em que ocorreu o debate no referendo da UE são sintomáticos de uma Grã-Bretanha lutando para encontrar o seu lugar no mundo pós-Império. Presente no discurso de alguns dos que defendem o voto de separação, havia uma tendência para romantizar os dias do Império Britânico, época em que Britanniagovernava os mares e era definida pela sua superioridade racial e cultural. O Brexit não é apenas uma expressão de nostalgia do império, é também fruto do império”.

A ligação direta entre as formas passadas de racismo ligadas à escravatura de africanos para alimentar os empreendimentos capitalistas imperiais e as formas atuais e alargadas de racismo na Europa torna-se clara, novamente, na análise de Catherine Hall: “O meu trabalho como historiadora convenceu-me que diversas maneiras de pensar em termos raciais é o legado mais destrutivo herdado do passado imperial da Grã-Bretanha. Na sequência do voto do Brexit, assistimos a um aumento profundamente perturbador do número de crimes de ódio cometidos contra polacos, muçulmanos e minorias raciais. A globalização, com todos os prejuízos que trouxe para muitos, claramente atuou como um gatilho para este surto de raiva e ressentimento, o desejo de “retomar o controle” e “proteger as nossas fronteiras” (2). O aumento acentuado do racismo e da xenofobia, aliado à nostalgia de um passado imperial no qual a Europa estava no centro do mundo, não é um fenómeno único do Reino Unido: claramente, ambos têm alastrado por toda a Europa. E na sua base, em qualquer ponto da Europa, existe uma ilusão específica e extremamente perigosa, possibilitada pelo esquecimento intencional do passado imperial da Europa e a recusa de assumir responsabilidade.

Vendo bem, a atual situação política no Reino Unido - uma profunda crise da qual oBrexit é apenas uma parte, mas que expõe a natureza básica das questões e como o país está dividido - serve como um sinal para o resto da Europa, alertando-nos para como chegámos ao ponto de quase negar os nossos ideais, e os direitos e liberdades dolorosamente conquistados desde o Iluminismo. O desejo de “recuperar o controle” e a obsessão de “proteger as fronteiras” - uma ilusão trágica e desesperada tornada talvez mais fácil de ser tecida devido à insularidade da Inglaterra - tem muitas facetas. Além de restringir quem pode entrar, o movimento em direção à criação de uma sociedade baseada na exclusão também depende de deportações forçadas. Nisha Kapoor, num estudo recém publicado, não deixa margem para dúvidas sobre a importância que as deportações forçadas vêm assumindo nos últimos anos: “Os números de deportações também aumentaram drasticamente em relação aos escassos milhares de pessoas no início dos anos 90. Entre 2010 e 2015, aproximadamente 40.000 a 45.000 pessoas foram deportadas anualmente” (3). Estes números devem suscitar alarme, especificamente no que diz respeito à questão dos direitos humanos e ao devido processo legal. Estes números também incluem cerca de dez por cento de cidadãos da UE, o que levou Adrienne Yong, professora da City Law School da Universidade de Londres, a declarar: “Existem leis para proteger os cidadãos da UE de serem deportados. No entanto, o Ministério do Interior parece querer minimizar as obrigações que tem ao abrigo da legislação da UE, mas também ao abrigo da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH). A tentativa de fugir às suas responsabilidades, mesmo antes de o Brexit ter ocorrido, não estabelece um precedente positivo para a proteção dos direitos dos cidadãos da UE no futuro” (4).

Um dos casos mais infames envolvendo o “Ambiente hostil” adotado pelo Ministério do Interior, quando Theresa May estava à sua frente, foi o escândalo Windrush que ocorreu em março e abril de 2018, estimulado pelo trabalho de investigação feito por repórteres do Guardian. Como noticiado, o Ministério do Interior tinha como alvo um número desconhecido de pessoas, a maioria pertencente à chamada geração Windrush de migrantes do Caribe que viajaram no Empire Windrush em 1948 e que eram, em grande parte, cidadãos britânicos de acordo com o British Nationality Act desse ano. No final, além de numerosas pessoas (até oito mil) que foram detidas, foram ameaçadas com deportação e foram excluídas de serviços sociais vitais, incluindo serviços de saúde - especialmente graves, já que muitos foram os primeiros a trabalhar no Serviço Nacional de Saúde (NHS), inaugurado também em 1948 - cerca de 63 pessoas foram realmente deportadas. David Lammy, deputado trabalhista que enfrentou o problema diretamente, escreveu: “Em 2018, no 70º aniversário da chegada do Empire Windrush, no 50º aniversário do abominável discurso Rivers of Blood (Rios de Sangue) de Enoch Powell e no 25º aniversário do assassinato de Stephen Lawrence, a trágica, mas incontestável realidade, é que a Grã-Bretanha ainda tem um enorme caminho a percorrer no campo das relações raciais e da migração. O escândalo Windrush foi mais do que um erro único causado por funcionários - foi uma exibição vergonhosa e ainda não resolvida de uma corrente tóxica e racista, impulsionada pelo alarme público sobre a imigração”.

Este ‘esquecimento’ intencional dos direitos dos cidadãos que são vistos como racialmente diferentes levou à demissão de Amber Rudd, por impor as regras estabelecidas pela sua antecessora. Ainda assim, pode pensar-se que quaisquer mudanças decorrentes, incluindo a nomeação de um novo Ministro do Interior, foram meramente estéticas, na melhor das hipóteses. Não só Amber Rudd está de volta como Ministra com outra pasta, como também é vista como uma das estrelas em ascensão no partido conservador. Quanto ao novo Ministro do Interior, Sajid Javid, filho de imigrantes paquistaneses, várias das suas intervenções mostram até que ponto o “Ambiente hostil” continua vivo. Quer se pense no seu anúncio de ter pedido a intervenção de um navio da Marinha de Guerra para patrulhar o Canal e afugentar eventuais migrantes, ou o anúncio de uma decisão - logo depois revelada como altamente problemática - de retirar a cidadania britânica a uma jovem por ter se juntado ao Daesh na Síria, pode-se também ver um desejo adicional de agradar  abertamente aos membros mais conservadores e de extrema-direita do público. E, ainda mais pertinente, embora o prometido esquema de compensação para as vítimas das ações questionáveis do Ministério do Interior contra membros da geração Windrush ainda aguarde concretização, é a decisão do Ministério do Interior de retomar os voos especiais de deportação. Como referiu o editorial doGuardian de 5 de fevereiro de 2019: “A decisão do governo de retomar as deportações para o Caribe antes do inquérito independente sobre o escândalo Windrush apresentar as suas conclusões e antes que qualquer um dos afetados receba uma compensação, é uma afronta à decência e um desprezo calculado para com os críticos da política de “Ambiente Hostil” criada por Theresa May, quando era Ministra do Interior. A mensagem é que a abordagem agressiva do Ministério do Interior, depois de uma pausa, está de volta”.

Igualmente preocupante é que, mesmo quando pressionado, o Ministério do Interior não parece capaz de fornecer o número de pessoas diretamente afetadas pelas suas diretivas e ações. Pelo menos onze dessas pessoas morreram - e a questão da responsabilidade é grande. Mas os números exatos não podem ser produzidos como admitido pelo Ministro do Interior que “disse que as autoridades britânicas também não conseguiram contatar muitos dos que pensaram ter sido apanhados no escândalo, sugerindo que o verdadeiro número de mortos poderia ser ainda maior” (5). Como Toni Morrison apropriadamente escreveu, “Algumas coisas são para esquecer. Outras coisas nunca se esquecem”. NoBoxing Day - o segundo dia de Natal, quando tradicionalmente os trabalhadores receberiam um presente ou uma caixa de Natal do seu patrão -  a BBC exibiu o primeiro dos três episódios de uma nova adaptação de The ABC Murders, de Agatha Christie, realizada por Sarah Phelps. Com John Malkovich no papel principal, como uma espécie de noir Hercule Poirot - uma decisão que levou a muitas críticas de alguns espectadores alheios à sua grandeza e profundamente preocupados por ser americano - esta versão da ficção de 1936 de Christie foi retrocedida ligeiramente para 1933, enquanto também de forma indireta, mas não menos poderosa, sugeriu aos telespectadores que refletissem sobre os paralelos com a Europa de hoje.

Indagada sobre a sua decisão de escolher 1933, Phelps explicou, de modo a, mais uma vez, convidar à reflexão sobre o presente: “escolhi 1933 especificamente porque estamos num período na Grã-Bretanha onde a British Union of Fascists [União Britânica de Fascistas] (BUF) começou a tornar-se muito atraente, especialmente dentro de outros partidos políticos dominantes que sentiram essa onda e começaram a adotar algumas das suas próprias expressões. Na década de 1930, a Grã-Bretanha também passou por um período de recessão selvagem e muitas pessoas necessitavam de encontrar alguém para culpar”. Phelps mudou vários aspetos importantes do romance de Christie. Um deles é o passado incerto de Poirot, na Bélgica, antes de migrar para a Inglaterra. Nesta versão - que repetidamente mostra como a atmosfera era hostil para qualquer um visto como estrangeiro - Poirot é-nos apresentado como tendo sido um padre, e não um inspetor da polícia belga. Como padre, tenta salvar alguns dos seus paroquianos que se tinham refugiado na pequena igreja rural fugindo das tropas alemãs que se aproximavam, no início da Grande Guerra, em 1914. Numa cena intensa, Poirot implora silenciosamente ao jovem soldado que o tem na mira da sua espingarda, para que não dispare; isso, enquanto a voz de um comandante alemão ordena que ele atire. Até que um tiro estala, e percebemos que o oficial decidiu executar o soldado que tinha sido incapaz de assassinar o padre. Atirado para o chão pelo cabo da arma do oficial, quando Poirot se reanima, vê a sua igreja completamente envolta em chamas. Quando Poirot consegue levantar-se do chão, solta um grito em francês: “Assassins”. A crescente xenofobia assassina desse período histórico, que há muito se pensava, embora não completamente banida, mas pelo menos reduzida à insignificância, ressurgiu de novo e ocupa um lugar central na política europeia. Seja alimentada pelos problemas económicos cada vez mais profundos, pela sensação de complacência por parte de uma elite cultural, convencida de que a paz na Europa, depois de tanta destruição, seria mais ou menos um dado irrevogável, ou mesmo apenas por causa da crueldade humana básica, não pode ser ignorada por mais um momento: o tempo dos assassinos está de volta para nos assombrar e, na sua raiz, encontra-se uma nostalgia pós-imperial renovada, impulsionada por uma negação intencional, vergonhosa e desavergonhada, do passado imperial da Europa.

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(1) “Things Fall Apart: From Empire to Brexit Britain”. 2 May 2017.

(2) Catherine Hall. ‘The racist ideas of slave owners are still with us today: The surge in hate crime since the Brexit vote is one legacy of an overlooked period of British history”. The Guardian, 26 September 2016.

(3) Nisha Kapoor. Deport Deprive Extradite: 21st Century State Extremism. London: Verso, 2019.

(4) Adrienne Yong. ‘When Britain can deport EU citizens – according to the law. The Conversation. 23 November 2017.

(5) “Windrush: 11 people wrongly deported from UK have died – Javid. 

Officials unable to contact many of those affected, suggesting death toll could be higher”. The Guardian. 12 November 2018.

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Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS– Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horiz
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por Paulo de Medeiros
A ler | 17 Março 2019 | Brexit, Escravidão, Toni Morrison