Amílcar Cabral: itinerários, memórias, descolonização

Após Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena / A Outra Face do Homem, a Editora cabo-verdiana Rosa de Porcelana volta a lançar um livro baseado na correspondência familiar do líder do PAIGC, Itinerários de Amílcar Cabral (2018). Trata-se de uma recolha de postais enviados por Amílcar Cabral à companheira, Ana Maria, e aos filhos, Raul e Ndira, organizada pela própria Ana Maria Cabral, por Filinto Elísio e Márcia Souto e comentada pela historiadora Aurora Almada e Santos.
Esta obra leva-nos a viajar com Cabral através de imagens, reflexo dos locais por ele visitados no âmbito da sua atividade diplomática, de expressões de intimidade fundidas com as da justeza da luta, e da contextualização histórica de cada viagem. Sobretudo, esta obra mostra-nos como as vivências e as memórias privadas são também elas inerentemente públicas e políticas. Não é apenas aos itinerários das viagens que acedemos, é também ao pensamento de Cabral sobre o mundo, o amor, a justiça:
“Aqui está uma tulipa: bela, altiva, rica de silêncios e de mistério. Como tu, companheira. Que tenhamos longa vida na luta difícil mas gloriosa pelo progresso e libertação do nosso povo: para que à luz dos teus gestos, transformemos os silêncios em alegria de viver e o mistério na força da nossa vida: o amor pela justiça”. Escreve a Ana Maria, a partir de Estocolmo.
“Vês esta terra linda cheia de gente bem vestida? A nossa luta é para fazer a nossa terra assim: bonita com toda a gente a viver bem, no trabalho e na justiça” ou, ainda, “Vês como o mundo é bonito, como as gentes são variadas – mas todas humanas?”. Escreve Cabral, a partir de Estocolmo e Rabat, respetivamente, ao filho, Raul.

Casa Vermelha (da série Gurué)| 2014 | Filipe BranquinhoCasa Vermelha (da série Gurué)| 2014 | Filipe Branquinho
Itinerários de Amílcar Cabral amplia um rol de publicações recentes em torno da sua vida, do seu pensamento e do seu legado. Se o interesse e admiração votados a Amílcar Cabral internacionalmente não são novos, parecem, no entanto, ter sido renovados, nos últimos anos, através de várias obras biográficas e historiográficas1, seminários e colóquios internacionais e documentários2, realizados nos mais variados contextos.
Esta profusão de iniciativas reflete a importância de Cabral como significante mnemónico universal mas também como significante complexo e diverso. Não são apenas leituras do passado que a lembrança de Cabral convoca, são leituras do presente pós-colonial, incluindo o questionamento do prefixo “pós”. Estas leituras são convocadas num quadro transnacional e transgeracional.
Para muitos jovens, hoje, em Cabo Verde, na Guiné-Bissau, em Portugal, em França, no Brasil, nos Estados Unidos da América, Cabral surge como uma possibilidade de crítica a várias formas de poder, de afirmação identitária e de resistência, confirmando, assim, que a originalidade do seu pensamento e da sua ação residia em articular e contrariar várias dimensões da dominação e da violência, desde o neocolonialismo à discriminação com base no género.

A evocação de Cabral, nestes diferentes contextos, vai muito para além da sua utilização como ícone vazio e institucionalizado. São evocações com pouca audiência e visibilidade mas são essenciais precisamente porque críticas da instrumentalização do seu legado: quer se trate dos rappers guineenses e cabo-verdianos que veiculam a memória da luta de libertação e do seu projeto revolucionário, quer se trate do estudo do seu pensamento como inspiração para novas lutas, quer se trate, ainda, da sua evocação enquanto parte de uma já quase-memória cultural, de forma fragmentada e dispersa, impregnada nos discursos das gerações recentes.
Certo é que Cabral convoca hoje imagéticas tão plurais como a de uma descolonização ainda em curso, a de novas formas de pan-africanismo ou de anti-imperialismo, a da defesa dos direitos humanos, a do antirracismo, a da crítica à corrupção ou ao tribalismo ou a da cultura como resistência.
A memória de Amílcar Cabral oferece-nos, por tudo isto, múltiplas oportunidades para pensar e pôr em prática também a descolonização da Europa, começando, por exemplo, por trazer para o centro das discussões sobre o ensino da História, sobre as celebrações nacionais e sobre a cidadania, os indivíduos, os povos e as ideias historicamente subalternizados.    

 

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Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS – Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horizonte 2020.

  • 1. Por exemplo: O fazedor de Utopias. Uma biografia de Amílcar Cabral de António Tomás, Tinta-da-China, 2007; Amílcar Cabral - Vida e Morte de um Revolucionário Africano de Julião Soares Sousa, Nova Vega, 2011; Claim No Easy Victories: The Legacy of Amilcar Cabral. Organizado por Firoze Manji e Bill Fletcher Jr. CODESRIA/ Daraja Press, 2013.
  • 2. Por exemplo: Cabralista de Valério Lopes e The heart of Amilcar Cabral de Guenny Pires.

por Sílvia Roque
A ler | 4 Agosto 2018 | Amílcar Cabral, descolonização, itinerários, memórias