A economia moral da feitiçaria: um ensaio em história comparativa - I

Num estudo recente sobre o comércio da escravatura, o historiador beninês Felix Iroko (1988: 199) comenta, com algum embaraço, uma tradição oral sobre a origem de conchas-buzio, uma moeda fundamental neste negócio. De acordo com informantes nativos, os búzios eram obtidos matando escravos, fazendo os seus corpos flutuar no Oceano Atlântico, e retirando-os após as conchas terem aderido aos seus cadáveres. 

Esta noção local não só choca com a informação empírica de que dispomos sobre a origem das conchas — Iroko lembra-nos que elas eram importadas para a África Ocidental do Oceano Índico via Europa — como também contradiz o inteiro corpo de análise construído recentemente a partir de estudos económicos da escravatura. Precisamente por se focarem numa mercadoria como os búzios, estes estudos têm argumentado no sentido da importância de princípios de mercado para compreender o desenvolvimento africano. Primeiro que tudo, pode ser demonstrado que os movimentos de conchas e escravos, ao longo de um complexo mercado internacional, eram operados de acordo com padrões previsíveis de oferta e procura; em segundo lugar, no interior da África Ocidental a importação em larga-escala de concha-moeda permitiu a monetização (e portanto a expansão de mercado) de transações em comestíveis e outros itens de consumo local (Hogendorn and Johnson, 1986). 

A equação de búzios com cadáveres de escravos deriva de uma visão muito diferente daquilo que esse comércio representou, tanto em África como nas relações de África com o mundo mais vasto. Não é preciso muita imaginação para compreender porque é que a morte surge como metáfora de um tráfico desenvolvido a partir da remoção de seres humanos do seu continente de origem, para muitos uma morte literal, mas para todos praticamente “um caminho de onde nenhum viajante regressa”. A tarefa mais desafiante é considerar até que ponto a percepção incorporada em tais termos representa uma alternativa ao conceito de racionalidade do mercado e aos discursos de modernização que o rodeiam. 

Esta tarefa será desenvolvida aqui através da discussão de duas ideias bem estabelecidas na literatura académica: economia moral e feitiçaria. A primeira é uma pura abstracção que pressupõe explicar a resposta ao capitalismo de várias comunidades, enquanto africanos na era do comércio de escravos e após, insistindo que considerações outras que não as do mercado devem governar e governam a produção e distribuição de bens materiais. A secção do meio deste ensaio irá rever criticamente o debate sobre economia moral para considerar o quão útil poderá ser para compreender a história africana.  

Feitiçaria, tal como empregue aqui, é também uma abstração, mas usada intencionalmente para representar os termos usados por sociedades Africanas e outras para descrever as suas próprias crenças e práticas. A secção introdutória do ensaio tentará identificar um idioma africano de feitiçaria que dá maior significado a textos, tais como os do relato local do Benim sobre transacções escravo-búzio. A secção final examinará a “loucura da bruxaria” na Europa da era inicial moderna, a fim de considerar de que modo a elaboração de elementos comuns na cultura Europeia e Africana tanto reflete como medeia diferentes trajectórias de entrada no mundo moderno. 

 

1.  O Idioma Africano de Feitiçaria como Discurso de História e Poder  

As diversas questões levantadas em torno da feitiçaria, incluindo a comparação de casos Africanos e Europeus, há muito que têm sido um marco na pesquisa antropológica africanista. Esta pesquisa partilha, de modo geral, da definição de feitiçaria-bruxaria como o uso do poder pós-natural por parte de uma pessoa para o prejuízo de outras; tem-se concentrado quase toda nas crenças sobre tais práticas e nos meios utilizados para neutralizá-las, ao invés de nas práticas em si; e é assumido que as crenças deste tipo têm consequências sociais importantes e refletem a maneira como os povos envolvidos ​​compreendem a sua experiência histórica mais vasta.

Para o propósito da presente análise duas questões em estudos de feitiçaria-bruxaria Africana devem ser enfatizadas: (i) os tipos de relações sociais envolvidas em acusações de feitiçaria, e (ii) o papel da reprodução, sexualidade e género nestas crenças. Praticamente todos os trabalhos disponíveis, pelo menos na África rural, indicam que a eficácia da feitiçaria-bruxaria é tida como uma função direta da intimidade entre feiticeiro-bruxa e vítima. Assim, a grande maioria das acusações e rituais envolve as relações entre pares, parentes e co-esposas; o corolário sendo que, com maior distância social, tais acusações diminuiríam (Douglas, 1970, xxx f.; Marwick, 1980:. 377 ss). Pesquisa recente, contudo, demonstra que as elites urbanas africanas receiam que aqueles deixados para trás nas suas aldeias estão a enfeitiçar quer as mesmas quer os projetos de Estado com os quais se identificam (Geschiere 1988, Ciekawy 1990, Bastian, infra). Além disso, enquanto acusações formais de feitiçaria contra os poderosos e ricos são raras, tem-se “tornado uma observação comum em estudos africanos” (Rowlands e Warnier 1988: 121) que tais indivíduos ascendentes sejam entendidos como feiticeiros. 

Lugar-comum que possa ser, a equação de feitiçaria-bruxaria com a obtenção de poder e riqueza tem sido negligenciada na literatura antropológica, que se tem focado principalmente na sociologia das acusações formais de feitiçaria. No entanto, são as crenças de feitiçaria que atravessam limites hierárquicos que entram mais diretamente nas preocupações do presente ensaio: a contemplação de mudança histórica por africanos; a competição de idiomas de feitiçaria com os discursos de mercados e modernização, e a sua comparação com as crenças Europeias de anti-bruxaria da era inicial moderna. 

Para este fim, Van Binsbergen (1981: 141-42) providencia uma distinção muito útil entre feitiçaria-bruxaria “impessoal” e “anti-pessoal”. A última consiste em infortúnios atribuídos à má vontade de pares com quem alguma tensão identificável ​​já existe. É esta categoria que Marwick (1970: 330) provavelmente tinha em mente quando declarou que “o aumento de tensões que acompanha a urbanização não é necessariamente expresso no idioma de feitiçaria-bruxaria”. Feitiçaria-bruxaria impessoal, por outro lado, é definida por van Binsbergen (1981: 163) em termos muito facilmente ligados a situações modernas como “a manipulação irresponsável de material humano para fins estritamente individuais.” 

No rural africano, o material humano manipulado por feitiçaria é frequentemente identificado com o controle sobre as forças que constituem a reprodução da vida do dia-a-dia. Nas circunstâncias menos problemáticas, estas forças são contidas na esfera doméstica da sexualidade conjugal e do cultivo e consumo de alimentos. Feiticeiros-bruxas congénitos são quase sempre descritos como insaciavelmente esfomeados: procuram “comer” outros, absorvendo os seus poderes reprodutivos na forma de cadáveres, crianças, fluídos sexuais, e por aí em diante. 

Um número de estudos (Goody 1970, Gottlieb, 1989) tem sublinhado uma distinção entre as feiticeiras-bruxas femininas, que são totalmente estigmatizadas, e os masculinos que são reconhecidos como feiticeiros legítimos e figuras de autoridade política e ritual. As distinções não residem nas atividades ou relações imediatas de reprodução e produção que identificam cada categoria como feiticeiros-bruxas: todos podem ser culpados de matar e consumir parentes próximos e os homens podem adquirir riqueza somente por predação sobre sociedades vizinhas. Pelo contrário, são as posições públicas tomadas pelos homens em questão que tornam a sua feitiçaria de algum modo mais tolerável ​​e até, em alguns casos, comemorada. Esta aceitação da bruxaria “oficial” é geralmente explicada como uma forma de resignação: as medidas anti-feitiçaria são ineficazes contra tais concentrações de poder (Rowlands and Warnier 1988: 121). Mas também é reconhecido que muitos africanos tomam a existência de feitiçaria-bruxaria como sendo inevitável e obíqua; há, assim, valor positivo no fato de algumas figuras de autoridade terem o poder místico para afastar a malignidade de outros. Esta necessidade é particularmente forte quando os perigos vêm de fora da comunidade e só podem ser combatidos por reis e adivinhadores da sua própria. (Goody 1970, Austen, 1986). 

A concepção de feitiçaria-bruxaria como um atributo ambíguo de poder em África é, muitas vezes, apresentada em termos a-históricos, como uma reflexão intemporal da tensão entre os valores comunais e individualismo egoísta e ansiedades sobre ameaças naturais à subsistência. Contudo, os nossos dados sobre crenças de feitiçaria são todos relativamente recentes; com poucas exceções eles são extraídos de sociedades que estavam há muito envolvidas ora com o mundo exterior Islâmico ora Europeu. É surpreendente que várias cosmologias da África Central e Ocidental liguem a feitiçaria à utilização de vítimas no noturno e / ou distante “segundo universo”, ecoando em termos mais ou menos explícitos a experiência do comércio de escravos do Atlântico (Hagenburcher-Sacripanti 1973: 143-63,  de Rosny 1985: 58-63;  McGaffey 1986,  Miller 1988: 4-5).

A explicação beninense das importações de búzio deve agora parecer mais familiar, não só como relato metafórico do comércio de escravos como também da expressão de um discurso que equaciona a aquisição de riqueza e poder com (i) o consumo de vida humana e (ii) ligações a um mundo exterior mais poderoso. Mas, se formos a afirmar a importância deste discurso para uma compreensão mais lata da experiência africana de mudança histórica, é preciso considerá-lo em termos mais gerais. O idioma da feitiçaria em África ecoa percepções de outras partes do mundo em termos de relações entre normas comunais e economias de mercado externamente-centradas. A comparação dessas percepções e relacionamentos por cientistas sociais tem produzido o seu próprio meta-discurso em torno do conceito de economia moral. 

 

continua (…)

 

Translation:  Filipe Calvão

por Ralph A. Austen
A ler | 19 Junho 2011 | África ocidental, África Oriental, Benim, conchas, economia, escravatura, feitiçaria