Castiel Vitorino Brasileiro curadoria de Jota Mombaça I Galeria BUALA

Aglutinar e Redistribuir. Castiel Vitorino Brasileiro. Fotografia digital, 2019Aglutinar e Redistribuir. Castiel Vitorino Brasileiro. Fotografia digital, 2019“Aqui foi o Quilombo do Pai Felipe” de Castiel Vitorino Brasileiro

17 DE MARÇO DE 2019

Bicha,

A história tem, de fato, nos exigido crueldade.

A ingenuidade perante as formas do poder não é um luxo ao qual nos podemos dar.

Não se sobrevive a uma guerra fingindo simplesmente que os canhões não estão apontados, que não há arame farpado nas ruas e que os cães de guarda não enxergam sua mira em nosso pescoço.

Eu sei que você sabe do que estou falando.

Nós ouvimos o ruído das bombas despencando céu abaixo e vimos muita gente desaparecer em muito pouco tempo.

Nós corremos em direção ao apocalipse porque sabíamos que ele ia nos pegar de qualquer jeito.

E chega dessa conversa de ficar surpresa a cada vez que o caldo entorna.  Você tem razão: a história tem exigido crueldade, porque vimos tudo isso vindo.

Eu sei que você sabe que a nossa experiência do tempo - de formas mais ou menos desastrosas - tropeça entre temporalidades sempre muito distintas, e que por vezes somos arrastadas por velhas correntes, tornamo-nos habitantes compulsórias de um passado que se atualiza.

A matéria orgânica do nosso corpo é acostumada a esses sobressaltos.

Toda bicha preta viva deve estar atenta como condição de estar viva. Essa regra nós não inventamos, mas há forças e saberes que só poderiam ter emergido do fato de termos sido submetidas a ela.

Há algo no que estamos fazendo que não pode ainda ser apreendido nem por nós mesmas nem pelas gentes e coisas que nos cercam.

Por isso não há linguagem para descrever a força que me arrasta até o seu trabalho, mas também não há nada por desvendar. Nós ouvimos os sussurros e nos dedicamos a montar e desmontar o quebra-cabeça..

Um manjericão roxo plantado na sua garganta, uma raiz costurada com tinta vermelha. Eu não me interesso pelo significado dessas imagens, mas pelas profecias que tem nelas. Em outras palavras: não é o significado, mas o sussurro que me motiva. O que eu consigo ler não é o foco, pois a nossa conversa está no ilegível.

Muito intuitivamente eu diria que posso sentir de longe a vibração que viaja no tempo e se manifesta no seu quarto de cura.

Mas por que os olhos ainda doem?

Nós entendemos o recado e sabemos que vamos testemunhar uma época brutal, mas quais épocas não foram brutais conosco?

Depois de ser esquartejado, o corpo jamais retorna a seu estado íntegro, de modo que o nosso corpo - esquartejado intergeracionalmente - é testemunha do fato de que a integridade se constitui na aliança. Que nossos corpos partidos encontram extensão e órgão uns nos outros e nas coisas - nas flores, na terra.

Jamais fomos humanas e por isso podemos ser flor e merda e sagradas.

A saúde elegida pelo Império que rege o mundo como conhecemos é o patógeno.

Se nós enxergamos a cura, é porque dos nossos olhos foram arrancadas todas as capas que mascaravam o mundo e a sua integridade.

Para nós nada é íntegro. Isso é a história a exigir-nos crueldade.
Nós enxergamos a cura, e enxergamos na cura o limite do mundo que nos foi dado.

Sabemos que a semente disso está para florescer agora.

Somos a anunciação em cada gesto.
Merdas e sagradas.
Aqui foi o Quilombo do Pai Felipe.

Com Carinho,
Jota Mombaça

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23.03.2019 | par martalanca | Castiel Vitorino Brasileiro, Jota Mombaça