Entrevista a Fausto

Fausto Bordalo Dias numa entrevista concedida à Visão em Junho de 2010, altura em que foi o músico a quem o CCB deu “Carta Branca” para, com direcção musical de Zé Mário Branco, fazer um espectáculo em que a sua trilogia “Diáspora Lusitana”, iniciada com “por Este Rio Acima” (82) e continuada com “Crónicas da Terra Ardente” (94), deu o mote. Em 2011 deve sair o terceiro disco, do qual Fausto e os seus músicos avançaram alguns temas neste espectáculo.

Homem discreto, discretíssimo na verdade, mas frontal e intransigente no essencial da sua vida e arte, Fausto concedeu uma rara entrevista à Visão (não, nunca o vimos, nem veremos, rendido aos poderes instituídos ou aos media, nunca o veremos numa “Caras” ou “Vip”, nem a embandeirar slogans e cedências ao facilitismo).  

Visão - Vergílio Ferreira dizia que “da nossa língua vê-se o mar”, também dá vontade de dizer que das suas canções, sobretudo das desta trilogia, se vê o mar. Mas não é o mar dos grandes feitos lusitanos, de Camões, nem o mar do mostrengo e do homem do leme de Pessoa, nem o mar das anémonas e corais de Sophia… Que mar é o seu?   

Eu diria que contei o outro lado da história. Não sou um nacionalista, mas considero-me um patriota e, nas minhas músicas, tentei encontrar o sentido do que a minha Pátria fez, durante os Descobrimentos. Porque me interessava compreendê-lo e adaptar esse sentido aos tempos actuais. Houve quem procurasse apenas glorificar. Eu glorifico o que há para glorificar, mas também conto o outro lado, o da gente que falhou e também matou. Nas sete canções inéditas que vou cantar agora, no Centro Cultural de Belém, conta-se o confronto, “à sombra das ciladas”, que não é meigo. Mas também há o maravilhamento dos portugueses quando encontram homens mais negros. O choque de culturas pode dar em maravilhamento. Esse contacto pode ser enriquecedor. Mas também sabemos que o encontro de culturas diferentes pode dar naquilo que deu, e ainda dá, em guerras e conflitos, de certo modo incompreensíveis. Faço sempre essa adaptação da leitura da história para os tempos actuais. 


Visão - É possível ouvir e gostar das suas músicas ignorando completamente o contexto histórico que lhe está por detrás, e interpretar uma música sobre uma viagem de barco como um música de amor, por exemplo? 
Fausto - No Barco Vai de Saída há uma parte que diz “só vejo cores, ai que alegria” e perguntaram-me se aquilo não era uma referência aos alucinogénios e outras coisas do género… Todas as leituras são possíveis. Em À Deriva Porto Rico [de Crónicas da Terra Ardente] eles contam “servem-no tabaco, em vez de vinho”. Nós vamos buscar estes relatos ao fundo da história, fazemos o percurso inverso e verificamos que muitas das situações continuam a ser vividas hoje. São iguais. Na sua geração, os Descobrimentos eram usados na escola e oficialmente como enaltecimento da nação. Agora, nos programas escolares, fala-se nos “factores económicos da expansão”… Parece que passámos da propaganda para uma visão economicista, como se a história fosse só curvas e gráficos… O que eu procurei privilegiar, no último capitulo que fecha a trilogia, é que muita gente viajou pelo conhecimento e pelo sonho. 
Visão - O próprio Fernão Mendes Pinto acabou por confessá-lo… 
Fausto - E voltou pobre, não enriqueceu, muita gente viajou pelo sonho, pela vontade de descoberta, pelo contacto com outros povos e outras culturas. No regresso, os exploradores eram recebidos por multidões entusiastas, eles revelaram mundos totalmente desconhecidos e que eu comparo como um ida à Lua ou a Marte.   Visão - Porque é que começou esta trilogia? Sentiu vontade de se desactualizar? 
Fausto - Porque me divertia imenso ler Fernão Mendes Pinto, era o meu livro de cabeceira. Em 1979, comecei a compor Por Este Rio Acima. Eu fiz parte da diáspora, os meus pais partiram, isso com certeza que me condicionou, mas não foi um acto consciente, sabe? Eu dei conta de mim a fazer aquilo sem saber porquê 
Visão - Ou será que queria, nessa altura, distanciar-se um bocadinho da actualidade? 
Fausto - Bom, não posso esconder que, na verdade, me cansei das canções de intervenção, já não faziam sentido nenhum, já ninguém as queria ouvir, estávamos a falar para o boneco. Foram canções úteis no momento em que foram feitas. Ponto final. Isso levou-me a uma reflexão mais cultural do que política. Senti isso, também pensando que Portugal, depois do 25 de Abril, estava a reencontrar-se com a sua primeira matriz cultural greco-romana, estava a abandonar o imaginário do Sul para se reencontrar com a Europa, como aconteceu. Tudo isso me fez pensar que já não fazia sentido o universo da canção de intervenção. Fazia sentido interrogar-me de onde vimos, para onde vamos, o que já fomos, de onde já voltamos, o que haveremos de ser… 
Visão - O Fausto pertenceu à geração que regenerou o País mas que não soube passar bem o testemunho… 
Fausto - Estou de acordo consigo, não passou bem. O 25 de Abril desejou muito mais do que aquilo que deu. Uma pessoa da minha geração que tivesse pensado que, com o 25 de Abril, se alterariam profundamente as coisas, está desiludida, sabe perfeitamente que o 25 de Abril não conseguiu atingir os seus objectivos. E que até houve uma regressão. 
Visão - Justamente por isso é que lhe perguntava se não fazia sentido recuperar a canção de protesto. O rap não estará a fazer isso? 
Fausto - Desculpe, mas não posso concordar. Esse é um protesto tão folclórico quanto ineficaz, porque é absolutamente reabsorvido pelo sistema. Os cantores de protesto da minha geração continuam a ser os mais incómodos. O sistema absorve aquilo, é discurso folclórico, às vezes bizarro, parece que está a contestar o sistema mas o sistema está a rir-se deles. O sistema não se incomoda com isso, até os edita e promove.

Visão - Deixa-se fascinar por palavras? 
Fausto - Há palavras notáveis, que caem em desuso como “rapariga”… Agora, diz-se mais depressa “gaja” ou “chavala”… Impressiona-me muito a introdução de novos termos puramente geracionais, transitórios, de moda e de meios localizados.. Em minha casa, não entra um certo dicionário que institucionaliza o termo “bué”. A geração futura já não vai reconhecê-lo, não está reconhecido pelo tempo. E vem um prof introduzi-la no nosso vocabulário. 
Visão - Mas não lhe parece que a maior crioulização da nossa língua virá pelos termos em inglês? 
Fausto - Isso é forte e feio. E as pessoas usam palavras em inglês de uma forma tão pomposa e tão saloia, pensam que isso as valoriza… Isso é avassalador e imparável, estamos a assistir a uma nova romanização, que é imparável, nada a fazer. E o acordo ortográfico… Sermos todos obrigados a abrasileirar a língua por imperativos diplomáticos, porque é da conveniência dos senhores embaixadores… 
Visão - Os discos que forem editados a partir do próximo ano já vão ter nova grafia das letras? 
Fausto - Nunca o permitirei, fica já aqui declarado. Nunca aceitarei este acordo. Óptimo sem “p” não existe!

  Entrevista publicada na revista “Visão” Nº902 de 17 Junho 2010 - www.visao.pt    

11.05.2011 | by martalanca | descobrimentos, Fausto, música